Ação popular.
Nos moldes do art. 5º, LXXIII, da Constituição da República e, no plano infraconstitucional, dos arts. 1º e 2º da Lei n. 4.717/1965, a ação popular é direito fundamental, atribuído ao cidadão, de acionar o Poder Judiciário com o objetivo de invalidar atos lesivos ao patrimônio material e imaterial do Estado, ampliando, assim, as formas pelas quais os titulares da soberania exercem prerrogativas fiscalizatórias dos afazeres públicos.

Ainda, constitui instrumento de efetivação da democracia participativa plasmada no art. 1º, parágrafo único, da Constituição, empoderando e estimulando a atuação da sociedade civil no controle de decisões estatais, especialmente por meio de medidas judiciais tendentes a corrigir ofensas a direitos ou interesses difusos e coletivos. Trata-se, portanto, de instrumento ulterior, repressivo e jurisdicional da correção de rumos da Administração Pública, passível de ser acionado por qualquer cidadão com amparo no direito fundamental à soberania popular.

O núcleo essencial da ação popular não está exclusivamente ligado à proteção material do Estado, mas, preponderantemente, ao afastamento de ilegalidades.
Não obstante tradicionalmente vinculado o exercício do direito ao ajuizamento da ação popular à demonstração do binômio ilegalidade-lesividade – notadamente sob a perspectiva de desfalque patrimonial ao Erário -, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento submetido ao regime de repercussão geral, fixou compreensão segundo a qual o núcleo essencial da actio popularis não está exclusivamente ligado à proteção material do Estado, mas, preponderantemente, ao afastamento de ilegalidades, inclusive sob a perspectiva moral do ato lesivo, não bastando, por isso, a simples constatação de perda econômica para autorizar a tutela de direitos coletivos pelos cidadãos (cf. Tema n. 836, ARE n. 824.781/MT, Relator Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 28.8.2015, DJe 9.10.2015). Na ocasião, restou fixada a seguinte tese:

#Tese de Repercussão Geral – Tema 836-STF: Não é condição para o cabimento da ação popular a demonstração de prejuízo material aos cofres públicos, dado que o art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal estabelece que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular e impugnar, ainda que separadamente, ato lesivo ao patrimônio material, moral, cultural ou histórico do Estado ou de entidade de que ele participe.

A ação Popular não se presta à proteção de meros interesses particulares do respectivo autor.
Dessa forma, a actio popularis não se presta à proteção de meros interesses particulares do respectivo autor, sob pena de subverterem-se os fins para os quais instituída. Vale dizer, o ajuizamento de ação popular, fundamentado no exercício da soberania do povo, deve ter por escopo imediato a defesa de interesses coletivos cuja preservação, apenas mediatamente, beneficia o autor enquanto membro do grupo, não se volvendo, contudo, à tutela de interesse preponderantemente individual daquele que em nome de todos atua, tampouco à mera contestação do legítimo exercício da atividade administrativa.

Por essas razões, a tutela de interesses imediatamente particulares e mediatamente coletivos por intermédio de ação popular é rechaçada pela jurisprudência das Turmas integrantes da 1ª Seção, conforme denotam os julgados: REsp 1.870.473-RS, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 24.5.2022, DJe 2.6.2022, REsp. 801.080-RJ, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 16.10.2007, DJ 29.10.2007 e REsp 36.534-DF, Relator Ministro Hélio Mossiman, Segunda Turma, julgado em 14.12.1994, DJ 13.2.1995.

No caso, foi proposta Ação Popular por Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, buscando a anulação de acórdão proferido no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, o qual negou provimento a recurso administrativo aviado pela Fazenda Nacional, mantendo, consequentemente, decisão exarada pela Delegacia da Receita Federal de Julgamento – DRJ, que reconhecera a decadência dos créditos tributários constituídos em desfavor de contribuinte por meio de Notificação Fiscal de Lançamento de Débito – NFLD.

Exemplo Didático.
Imagine que João, um auditor fiscal, verificou que uma decisão do CARF reconheceu a decadência de créditos tributários de uma empresa, o que, na visão dele, representa uma perda para o erário. Ele decide propor uma Ação Popular para anular essa decisão, alegando que ela é lesiva ao patrimônio público.

Pode João, na qualidade de cidadão, utilizar a Ação Popular para anular a decisão do CARF baseada apenas na sua discordância sobre a interpretação da decadência tributária?
Não, João não pode utilizar a Ação Popular para anular a decisão do CARF apenas com base em sua discordância interpretativa. A Ação Popular requer a demonstração de uma ilegalidade manifesta, e não apenas uma divergência de entendimento sobre a legislação aplicada. A jurisprudência do STJ rejeita o uso da Ação Popular para proteger interesses particulares ou para contestar decisões administrativas sem evidência clara de ilegalidade.

Impossibilidade de utilização da ação popular no caso concreto.
Em consulta ao sítio eletrônico do STJ, foram identificados ao menos 200 (duzentos) Recursos Especiais e Agravos interpostos nos autos de Ações Populares, denotando a utilização da via eleita para, reiteradamente, se contrapor à posição do tribunal administrativo responsável pela apreciação definitiva acerca da regularidade das exigências fiscais – caso do CARF -, bem como para afastar intelecção do CNAS quanto ao preenchimento de requisitos para o gozo de imunidade relativa a contribuições sociais (e.g. REsp n. 1.889.451/RS, Relator Ministro Sérgio Kukina; REsp n. 1.704.495/RS, Relatora Ministra Assusete Magalhães; e AREsp n. 891.597/RS, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho).

Problemas decorrentes da má utilização da ação popular na esfera administrativa.
O elevado grau de litigiosidade expressa nítida insubordinação ao entendimento jurídico exarado por órgãos superiores, conduta passível, ao menos em tese, de caracterizar infração aos deveres funcionais de lealdade às instituições e de cumprimento das legítimas deliberações das autoridades às quais vinculado (cf. art. 116, II e IV, da Lei n. 8.112/1990).

Assegurar a servidor público integrante dos quadros do Fisco, via ação popular, a contestação judicial de deliberações de órgãos administrativos superiores e aos quais seus atos estão sujeitos a reexame, como no caso, pode, a um só tempo, importar em subversão da estrutura hierárquica da Administração Pública e viabilizar a utilização da actio popularis como instrumento de suposta vingança por não ter sido chancelada a sua interpretação pelo órgão julgador.

Os argumentos utilizados na ação demonstram uma mera discordância com a decisão do CARF.
Desde o ajuizamento da Ação Popular, verifica-se que não houve apontamento de manifesta ilegalidade do entendimento abraçado pelo CARF, desvio ou abuso de poder praticado pelos julgadores, tampouco indicativo de adoção de tese contrária a sedimentados precedentes jurisdicionais; ao revés, a argumentação trazida na petição inicial evidencia mera discordância quanto ao juízo hermenêutico sufragado em âmbito administrativo, em sentido oposto àquele defendido na demanda originária.

Eventual invalidade de ato administrativo somente poder ser aferida à vista da exegese conferida à lei que o ampara, a simples discordância interpretativa, por si só, não se qualifica como ilegalidade passível de ser sanada por meio de Ação Popular, mormente quando em análise decisões de colegiados paritários sobre disposições legislativas de conteúdo polissêmico e objeto de interpretações díspares.

Conquanto se alegue a existência de prejuízo ao erário no reconhecimento da decadência tributária – elemento tido pelo acórdão recorrido como central para viabilizar o ajuizamento da demanda -, o âmago do direito fundamental protegido pelos arts. 5º, LXXIII, da Constituição da República, e 1º e 2º da Lei n. 4.717/1965, consiste na prerrogativa atribuída ao cidadão para afastar ilegalidades na condução dos afazeres estatais, independentemente de eventual desfalque financeiro.
STJ. REsp 1.608.161-RS, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, por unanimidade, julgado em 6/8/2024, DJe 9/8/2024 (info 820).

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