Controvérsia.
Cinge-se a controvérsia acerca da aplicação do princípio da continuidade típico-normativa à conduta que frustra a licitude de concurso e/ou a dispensa indevidamente, tendo em vista a atual redação do artigo 17, § 10-C da Lei n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA), o qual dispõe sobre a precisão da tipificação e veda a modificação do fato principal e da capitulação legal.

Lei n. 8.429/1992 – Lei de Improbidade Administrativa.
Art. 17, § 10-C. Após a réplica do Ministério Público, o juiz proferirá decisão na qual indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

Exemplo didático.
Pedro, prefeito da cidade X, foi acusado de em 2005 ter contratado serviços advocatícios, em princípio prestados sem a devida realização de concurso público, licitação ou mesmo de nomeação a cargo de provimento amplo, o que causou prejuízo ao erário na medida em que frustrou a licitude do concurso e ou se dispensou indevidamente.

Na época, o Ministério Público propôs ação civil pública por ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei nº 8.429/92 (ato que atenta contra os princípios da Administração Pública). Após condenação em primeiro grau, Pedro recorreu. Na oportunidade, já após a edição da Lei nº 14.230/2021, afirmou que já não seria possível a condenação por improbidade administrativa com base na violação genérica a princípios.

O Tribunal a quo, entretanto, além de constatar que as condutas praticadas violaram os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade e probidade administrativa, os quais regem a administração pública, foi categórico ao afirmar a presença do dolo na conduta do recorrente, que, ignorou a regra concernente à prévia realização de procedimento licitatório, realizou a contratação de serviços de advocacia incorrendo na conduta que se amolda ao art. 11, V, da Lei n° 8.429/1992, por força da continuidade típico-normativa.

Ocorre que Pedro mais uma vez recorreu afirmando que pelo novo teor do art. 17, § 10-C, da Lei n° 8.429/1992, seria inviável a modificação pelo juiz da capitulação legal apresentada pelo autor.

Pedro tem razão?
Não. O art. 17, § 10-C da Lei n. 14.230/2021, não pode ser aplicado aos processos já sentenciados. Logo, na presente hipótese, inexiste óbice legal para a alteração do enquadramento jurídico da conduta ilícita objeto de sentença em data anterior à vigência da referida Lei. Por essa razão, admite-se a incidência da continuidade típico-normativa.

Possibilidade de verificação de continuidade típico-normativa.
Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal, por meio do Tema n. 1.199, conferiu interpretação restritiva às hipóteses de aplicação da nova redação da LIA, adstrita aos atos ímprobos culposos, não transitados em julgados. Em momento posterior, ampliou a aplicação da tese para os casos de responsabilização por violação genérica dos princípios discriminados no caput do art. 11 da referida lei, ou nos revogados incisos I e II do aludido dispositivo, desde que não haja condenação com trânsito em julgado.

Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça adotou o entendimento de que é possível a aplicação do princípio da continuidade típico-normativa, de modo a afastar a abolição da tipicidade da conduta do réu, quando for possível o enquadramento típico nos incisos da nova redação trazida pela Lei n. 14.230/2021, preservando a reprovação da conduta. Isso porque, a nova legislação, no caput do art. 11, tipifica de forma taxativa os atos ímprobos por ofensa aos princípios da administração pública, não mais se admitindo a condenação genérica por mera ofensa aos aludidos princípios.

Conduta de frustrar o procedimento licitatório.
A conduta de frustrar o procedimento licitatório, por sua vez, continuou sendo vedada tanto na esfera criminal e cível. O Capítulo II-B do Título XI foi inserido no Código Penal, tratando justamente das mesmas condutas ilícitas. Já no âmbito cível, a referida conduta tem seu similar no art. 10, VIII, da LIA.

A legislação civil, contudo, passou a exigir a efetiva perda patrimonial para que esteja configurado o ato de improbidade, não bastando a presunção de dano ou dano in re ipsa. Se não houver a efetiva perda patrimonial, a conduta poderá ser enquadrada como ato que atenta contra os princípios da administração pública na forma do art. 11, V, da referida Lei.

Mudança de paradigma com a Lei nº 14.230/2021.
Até a edição da Lei n. 14.230/2021, a jurisprudência do STJ estava sedimentada no sentido que, na ação de improbidade, o réu defende-se dos fatos imputados, e não da capitulação legal da conduta. Antes, não existia a incidência do princípio da tipicidade cerrada, nem tampouco maior preocupação formal com a subsunção da conduta aos incisos dos artigos 9º, 10 e 11 da LIA.

No caso, o julgamento pelas instâncias ordinárias ocorreu antes da alteração legislativa, de modo que estavam em consonância com a não aplicação do princípio da tipicidade cerrada. Da mesma forma, não tratou de dano presumido, já que as instâncias ordinárias assentaram a existência de dano ao erário com o pagamento ao agente ímprobo e a ausência de prestação de serviço.

O art. 17, § 10-C da Lei n. 14.230/2021, não pode ser aplicado aos processos já sentenciados.
Destaca-se que a jurisprudência atual do STJ é no sentido de que o art. 17, § 10-C da Lei n. 14.230/2021, não pode ser aplicado aos processos já sentenciados.

Logo, na presente hipótese, inexiste óbice legal para a alteração do enquadramento jurídico da conduta ilícita objeto de sentença em data anterior à vigência da referida Lei. Por essa razão, admite-se a incidência da continuidade típico-normativa.

Ainda, o contexto fático delineado pelo Tribunal de origem assentou que no Município existiam outros concorrentes que poderiam se habilitar para disputar o certame, que foi dispensado indevidamente, já que o valor contratado excedeu a própria previsão legal, não sendo cabível a contratação direta. Por isso, as condutas praticadas violaram os princípios que regem a administração pública, sendo constatada a presença do dolo ao ignorar a regra concernente à prévia realização de procedimento licitatório.
STJ. AREsp 1.417.207-MG, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 17/9/2024, DJe 19/9/2024 (info 826).

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