Exemplo Didático.
A Empresa X aderiu a um regime especial de ICMS oferecido pelo Estado de São Paulo, que lhe permitia apropriar-se de créditos acumulados do imposto. Para garantir o cumprimento das suas obrigações financeiras nesse regime especial, foi exigido da empresa a contratação de um seguro garantia. Esse seguro garantia tinha como função cobrir eventuais débitos fiscais da empresa perante a Fazenda estadual.
Ocorre que o regime especial de ICMS concedido foi posteriormente revogado em 15 de fevereiro de 2017. Em 5 de fevereiro de 2018, a Fazenda Pública do Estado de São Paulo lavrou um auto de infração contra a empresa, alegando descumprimento de obrigações fiscais durante a vigência do regime especial.
Com base no auto de infração, a Fazenda acionou a seguradora, exigindo o pagamento do valor segurado. A seguradora se recusou a pagar a indenização, alegando que:
O contrato de seguro garantia havia se encerrado junto com o regime especial em 15/02/2017, e, portanto, não seria mais válido na data da infração (05/02/2018).
A exigibilidade do crédito tributário estava suspensa porque a empresa havia apresentado recurso administrativo contra o auto de infração.
Diante disso, a Fazenda Pública de São Paulo propôs com uma ação judicial contra a seguradora para forçar o pagamento da indenização do seguro garantia. O TJ-SP concordou com a seguradora e entendeu que o seguro garantia tinha caráter acessório, ou seja, deveria ser extinto junto com o regime especial. Assim, como o auto de infração foi lavrado após a revogação do regime especial, o seguro não poderia mais ser acionado. Além disso, o tribunal entendeu que, como havia um recurso administrativo pendente, a exigibilidade do crédito tributário estava suspensa, o que também impediria a cobrança do seguro garantia.
A decisão do TJ-SP foi correta?
Não. A possibilidade de exigir a indenização de seguro garantia, que visa assegurar o pagamento de crédito tributário, não está atrelada estritamente ao prazo de vigência do contrato principal (regime especial de ICMS), mas sim à vigência da própria apólice de seguro garantia, ainda que o auto de infração seja lavrado em data posterior.
Controvérsia.
A controvérsia se resume sobre a possibilidade de se exigir o prêmio de seguro garantia decorrente de infrações tributárias, considerando duas questões principais.
A primeira refere-se à vigência do seguro garantia, que teria se encerrado na data da revogação do contrato de regime especial do ICMS, enquanto o auto de infração foi lavrado em data posterior. A segunda diz respeito à possibilidade de cobrança da indenização, mesmo com a suspensão da exigibilidade do crédito tributário em decorrência da pendência de recurso administrativo.
No caso, o Tribunal de origem entendeu que o contrato de seguro garantia teria natureza de contrato acessório, devendo ser extinto com o contrato principal e que a exigibilidade do crédito tributário estava suspensa.
O contrato de seguro possui natureza de contrato aleatório.
Em que pese o referido entendimento, o contrato de seguro possui natureza de contrato aleatório, justamente pela ausência de equivalência entre as prestações. O segurado não pode prever, de imediato, o que receberá em troca de sua contraprestação, uma vez que o segurador assume um risco, que é o elemento essencial desse tipo de contrato. Assim, o segurador deve ressarcir o dano sofrido pelo segurado, caso o evento incerto e previsto no contrato venha a ocorrer.
A cobrança de indenização de seguro garantia que visa garantir pagamento de crédito tributário não pode estar atrelada estritamente ao prazo de vigência do contrato principal (regime especial). Essa lógica faz presumir que caso haja infração no último dia de vigência do regime especial, o fisco não poderia lavrar auto de infração no dia seguinte para receber o prêmio da seguradora.
A cobertura contratual de seguro garantia deve considerar a boa-fé das partes, que devem cumprir a avença com probidade. Caso a inadimplência do tomador perante a obrigação garantida tenha ocorrido durante a vigência da apólice, a caracterização do sinistro (sua comprovação) pode ocorrer fora do prazo de vigência da apólice. Esse entendimento é refletido na Circular n. 662/2022, da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), autarquia reguladora do mercado de seguros.
A suspensão da exigibilidade não importa na improcedência da ação, mas tão somente na necessidade de aguardar o deslinde da questão na seara administrativa.
Por outro lado, quanto ao recurso administrativo do contribuinte, embora suspenda a exigibilidade do crédito tributário, na forma do art. 151, VI, do CTN, não deve importar a extinção da ação, que deve ser suspensa para aguardar o deslinde da questão na seara administrativa.
Embora se trate de ação de cobrança, pela natureza do objeto segurado, deve ser aplicada a jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, perfectibilizada após a propositura da ação, tem o condão somente de obstar o curso do processo e não de extingui-lo.
STJ. AREsp 2.678.907-SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 4/2/2025, DJEN 10/2/2025 (info 841).