Exemplo didático.
Augusto dirigia o seu carro de madrugada, embriagado e com velocidade acima da permitida. Durante o trajeto, Augusto passou por uma área muito escura e mal sinalizada, já conhecida pelos locais como perigosa em virtude dos vários acidentes de trânsito que ocorrem no local. Após uma curva, o motorista não viu um barranco, caindo sobre uma casa onde e ferindo fatalmente o morador.
O Ministério Público apresentou denúncia por homicídio com dolo eventual. O juiz, por sua vez, proferiu decisão de pronúncia por “presumir que a ação foi dolosa”.
A decisão de pronúncia foi correta?
Não. Ainda que a pronúncia seja uma fase em que a decisão é tomada com base em um juízo de probabilidade, não se admite que a presença do dolo, elemento essencial para a submissão do acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri, seja imputado mediante mera presunção.
Controvérsia.
Discute-se a possibilidade de afastamento do dolo eventual, a fim de que seja desclassificada a conduta de homicídio simples doloso para homicídio culposo na direção de veículo automotor, ao argumento de que não havendo nos autos demonstração cabal de que o recorrente aquiesceu com a ocorrência do resultado morte, assumindo o risco de produzi-la, a desclassificação da conduta em questão para outra de competência do juízo singular é medida que se impõe.
Não se admite a pronúncia por mera presunção de que a ação foi dolosa.
Ao contrário do que afirma o Magistrado singular, a pronúncia é sim o momento em que, após devida instrução probatória, o Juízo tenha condições mínimas de averiguar se se trata de homicídio com intenção de matar, tanto que é possível nesta fase decisões como impronúncia, desclassificação ou absolvição sumária. Não se trata de uma decisão que avalia a plausibilidade jurídica das acusações e recebe a inicial acusatória, mas de um juízo de admissibilidade realizado após produção probatória, razão pela qual não se admite que o acusado seja submetido a julgamento por juízes leigos, apenas por mera presunção, o dolo deve estar inequívoco, sob pena de incompetência do Tribunal do Júri.
Peculiaridades do caso concreto.
Há de se ressaltar, ainda, a notícia trazida aos autos pela defesa, de que logo após o acidente foram tomadas medidas preventivas pela Prefeitura da Capital, no sentido de reforçar a segurança na via para evitar outros acidentes no local, a reforçar fundada dúvida a respeito do dolo eventual do acusado. Aliado a isto, a notícia de que, além de terem acontecido anteriores acidentes no local e o fato de que uma defensa metálica vinha sendo uma reivindicação constante dos moradores daquela área, que realizaram protestos, fecharam a via, mas só conseguiram uma atitude proativa do Poder Público, após a fatalidade.
A corroborar ainda mais essa conclusão, narram os autos que se tratava de local ermo na ocasião do acidente (que ocorreu de madrugada), além de a tragédia ter acontecido em razão de o carro ter caído de um barranco sobre uma rua de casas em que acontecia um evento, circunstâncias não passíveis de ser previstas pelo condutor do veículo.
Desclassificação para o crime do art. 302 do CTB.
Em casos semelhantes ao dos autos, em que não são apontadas outras circunstâncias concretas, além do suposto estado de embriaguez e a velocidade acima da permitida para a via, o Superior Tribunal tem reconhecido inviável a conclusão a respeito da presença do dolo eventual.
Nesse contexto, deve ser desclassificada a conduta de homicídio simples doloso para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro), afastando, por consequência, a competência do Tribunal do Júri.
STJ. AgRg no HC 891.584-MA, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Rel. para acórdão Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, por maioria, julgado em 5/11/2024, DJe 18/11/2024 (info 835).
Aprofundando!
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça entende que o simples fato de o acusado encontrar-se embriagado não justifica por si só a imputação de dolo eventual.
STJ. AgRg no AREsp 2.519.852-SC, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, por maioria, julgado em 3/9/2024 (info 824).
A tentativa de fuga após o acidente é posterior aos fatos e não permite concluir que o réu agiu com dolo.
STJ. AgRg no AREsp 2.519.852-SC, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, por maioria, julgado em 3/9/2024 (info 824).