Exemplo Didático.
Maria foi vítima de estupro e, durante o julgamento, o advogado de defesa do agressor começou a fazer perguntas sobre a vida sexual pregressa de Maria, tentando sugerir que seu comportamento justificaria, de alguma forma, a conduta do acusado. Além disso, o advogado trouxe prints de redes sociais com fotos da jovem trajando biquíni com o objetivo de desqualificar a vítima.
É permitido que, durante o julgamento, sejam feitas perguntas ou apresentadas provas sobre a vida sexual pregressa de Maria para justificar a conduta do agressor?
Não. É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de maneira que se proíbe eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais.
Revitimização por meio de atos preconceituosos de violência de gênero contra a mulher.
Apesar da evolução legal e constitucional, o Estado e a sociedade brasileira continuam aceitando a discriminação e a violência de gênero contra a mulher na apuração e judicialização dos atentados contra ela, principalmente nos crimes contra a dignidade sexual. De fato, é comum que, nas audiências, a vítima seja inquirida quanto à sua vida pregressa e aos seus hábitos sexuais para que tais elementos sejam utilizados como argumentos para justificar a conduta do agressor.
Essas práticas não possuem base legal nem constitucional e foram construídas para relativizar a violência contra a mulher e gerar tolerância em relação a estupros praticados contra aquelas cujo comportamento fugisse do que era considerado aceitável pelo agressor. Nesses casos, culpa-se a vítima pela conduta delituosa do agente.
Nesse contexto, todos os Poderes da República devem atuar conjuntamente para coibir a violência de gênero, especialmente a vitimização secundária da pessoa agredida em sua dignidade sexual.
Invocar elementos sobre a vida sexual pregressa da vítima pode importar na nulidade do ato.
Foi conferida interpretação conforme a Constituição à expressão elementos alheios aos fatos objeto de apuração posta no art. 400-A do CPP/1941, para excluir a possibilidade de invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento, nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP/1941.
Entretanto, a nulidade não pode ser declarada para beneficiar quem a causou.
A vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida não podem ser utilizados na fixação da pena em crimes sexuais.
Foi conferida interpretação conforme a Constituição ao art. 59 do CP/1940, para assentar ser vedado ao magistrado, na fixação da pena em crimes sexuais, valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida.
Possibilidade de responsabilização do juiz que permite a revitimização.
É dever do magistrado julgador atuar no sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal.
Conclusão.
Com base nesses entendimentos, o Plenário, por unanimidade, julgou procedente a arguição para
(i) conferir interpretação conforme a Constituição à expressão elementos alheios aos fatos objeto de apuração posta no art. 400-A do CPP/1941, para excluir a possibilidade de invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento, nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP/1941;
(ii) vedar o reconhecimento da nulidade referida no item anterior na hipótese de a defesa invocar o modo de vida da vítima ou a questionar quanto a vivência sexual pregressa com essa finalidade, considerando a impossibilidade de o acusado se beneficiar da própria torpeza;
(iii) conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 59 do CP/1940, para assentar ser vedado ao magistrado, na fixação da pena em crimes sexuais, valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida; e
(iv) assentar ser dever do magistrado julgador atuar no sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal. Por fim, o Tribunal determinou o encaminhamento do acórdão deste julgamento a todos os tribunais de justiça e tribunais regionais federais do País, para que sejam adotadas as diretrizes ora determinadas.
STF. ADPF 1.107/DF, relatora Ministra Cármen Lúcia, julgamento finalizado em 23.05.2024 (info 1138).
APROFUNDANDO!
1. Caso Eloá Pimentel.
Em outubro de 2008, Eloá Pimentel, uma adolescente de 15 anos, foi sequestrada e mantida em cativeiro por quase 100 horas por seu ex-namorado Lindemberg Alves Fernandes. O sequestro terminou tragicamente com a morte de Eloá após uma intervenção mal-sucedida da polícia.
Durante o julgamento de Lindemberg em 2012, a defesa tentou argumentar que o comportamento de Eloá e sua vida pessoal teriam contribuído para o crime. Isso incluiu tentativas de explorar sua vida amorosa e seu comportamento como forma de justificar ou atenuar a responsabilidade de Lindemberg. Essa estratégia foi amplamente criticada por especialistas em direito e defensores dos direitos das mulheres, que consideraram essas ações como uma forma de revitimização e desqualificação da vítima.
Consequências: O caso trouxe à tona o debate sobre a vitimização secundária e a necessidade de proteção das vítimas de violência de gênero durante os processos judiciais. Lindemberg foi condenado a 98 anos e 10 meses de prisão por diversos crimes, incluindo homicídio qualificado, tentativa de homicídio e cárcere privado.
2. Caso Mariana Ferrer.
O caso Mariana Ferrer envolve a influenciadora digital Mariana Ferrer, que acusou o empresário André de Camargo Aranha de estupro. O suposto crime ocorreu em 2018 durante uma festa em um beach club em Florianópolis. Mariana alegou que foi dopada e estuprada, e o caso ganhou ampla repercussão na mídia e nas redes sociais.
Durante a audiência, Mariana Ferrer foi submetida a um interrogatório pelo advogado de defesa que utilizou imagens e comentários para desqualificar a vítima, incluindo menções depreciativas sobre suas fotos e comportamento pessoal. A conduta do advogado foi amplamente criticada, sendo considerada humilhante e revitimizadora.
O caso levou a edição da Lei Mariana Ferrer (Lei nº 14.245/2021), que acrescentou o art. 400-A ao CPP.