Exemplo Didático
Maria casada com José e mãe de duas filhas, Ana e Carla, decide fazer um testamento. Ana é completamente capaz, enquanto Carla é criança. Maria tem um patrimônio significativo e quer garantir que ambas as filhas sejam bem cuidadas após sua morte.

No testamento, Maria destina todo o patrimônio que poderia dispor (isto é, aquele que não integra a legítima) as suas duas filhas. Ocorre que Maria adiciona um cláusula: ela institui Ana como curadora especial dos bens destinados a Carla, provenientes da parcela disponível da herança. A cláusula é inserida com base no Artigo 1.733, parágrafo 2º, do Código Civil.

Ocorre que o pai de Maria, José, ainda está vivo e detém o poder familiar. Por isso, ele alegou que a cláusula seria inválida, posto que irrazoável. Alguns dos argumentos foram os seguintes:
A faculdade prevista no artigo 1.733, parágrafo 2º, do Código Civil não se aplica aos casos em que os herdeiros necessários também são os únicos beneficiários da parte disponível, pois, assim, não haveria justa causa e operabilidade na restrição imposta.
José, como pai da criança, detentor do poder familiar, não poderia ser afastado da administração dos bens da filha sem justa causa.
Afastar José da administração dos bens da criança equivaleria e levantar suspeitas sobre a sua idoneidade.

Os argumentos de José devem prevalecer?
Não. É válida a disposição testamentária que institui filha co-herdeira como curadora especial dos bens deixados à irmã incapaz, relativamente aos bens integrantes da parcela disponível da herança, ainda que esta se encontre sob o poder familiar ou tutela.

Delimitação da controvérsia.
A controvérsia reside na validade de cláusula testamentária, em que prevista a instituição de filha maior como curadora especial de sua irmã co-herdeira incapaz relativamente aos bens integrantes da parcela disponível da herança instituída pela genitora comum conforme o parágrafo 2º do artigo 1.733 do Código Civil, o qual permite que quem institui um menor herdeiro ou legatário nomeie um curador especial para os bens deixados, mesmo que o beneficiário esteja sob poder familiar ou tutela.

Na origem, as instâncias ordinárias declararam ineficaz a disposição testamentária em que a autora da herança nomeara a sua filha maior como curadora especial, sob o fundamento principal de que a faculdade prevista no artigo 1.733, parágrafo 2º, do Código Civil não se aplica aos casos em que os herdeiros necessários também são os únicos beneficiários da parte disponível, pois, assim, não haveria justa causa e operabilidade na restrição imposta.

Assim delimitado o contexto, o testamento consubstancia expressão da autonomia privada, inclusive em termos de planejamento sucessório – ainda que limitada pelas regras afetas à sucessão legítima -, e tem por escopo justamente a preservação da vontade daquele que, em vida, concebeu o modo de disposição de seu patrimônio para momento posterior à sua morte, o que inclui a própria administração/gestão dos bens deixados.

A instituição de curador para o patrimônio não exclui ou obsta o exercício do poder familiar pelo genitor sobrevivente ou a tutela.
A instituição de curador para o patrimônio não exclui ou obsta o exercício do poder familiar pelo genitor sobrevivente ou a tutela, porquanto compete àquele tão-somente gerir os bens deixados sob a referida condição, em estrita observância à vontade do autor da herança, sem descurar dos interesses da criança ou adolescente beneficiário.

Não há necessidade de auferir a idoneidade do detentor do poder familiar (ou do eventual tutor).
A circunstância de a descendente, ainda criança, manter a posição de herdeira legítima e testamentária, simultaneamente, não conduz ao afastamento da disposição relacionada à instituição de curadora especial para administrar os bens integrantes da parcela disponível da testadora, expressamente prevista em lei, sem que haja qualquer necessidade de aferir a inidoneidade do detentor do poder familiar ou tutor.
STJ. REsp 2.069.181-SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 10/10/2023 (info 791).

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