Controvérsia.
A controvérsia reside na análise da presença dos requisitos necessários para a caracterização do crime previsto no art. 213 do Código Penal.

Delito de estupro.
O delito de estupro tutela a liberdade sexual de qualquer pessoa, consistente na possibilidade de escolher livremente com quem e quando manter relações sexuais. O constrangimento configurador do núcleo do tipo do crime pode se dar mediante violência ou grave ameaça. E, no caso em exame, a violência ficou configurada pelo uso de força física para vencer a resistência da vítima apresentada por meio do seu dissenso explícito e reiterado para com o coito anal.

A discordância com o ato sexual não precisa ser anterior ao ato, podendo também ocorrer durante.
É certo que o dissenso da vítima é fundamental para a caracterização do delito. Portanto, a discordância da ofendida precisa ser capaz de demonstrar sua oposição ao ato sexual. Além disso, a concordância e o desejo inicial têm que perdurar durante toda a atividade sexual, pois a liberdade sexual pressupõe a possibilidade de interrupção do ato sexual.

O consentimento anteriormente dado não significa que a outra pessoa possa obrigá-la à continuidade do ato sexual. Se um dos parceiros decide interromper a relação sexual e o outro, com violência ou grave ameaça, obriga a desistente a continuar, haverá a configuração do estupro.

Caso concreto.
No caso, embora inicialmente tenha a vítima consentido com o ato sexual. No curso da relação houve a negativa concreta dela em praticar o coito anal e, mesmo assim, com expresso dissenso, e reiterados pedidos para que parasse o ato, o réu ignorou o pleito e, exercendo força física, aqui caracterizada por continuar introduzindo o pênis com força, segurar a vítima e colocar o peso do seu corpo sobre o dela, persistiu até obter o seu intento. Ou seja, o acusado, mesmo ciente da discordância expressa da vítima, continuou a relação sexual mediante uso da força física.

Além disso, a suposta vítima manteve contato com o réu. Na semana seguinte ao ato, enviou mensagem a ele sugerindo repetir o encontro. Outra mensagem foi enviada um ano mais tarde, quando ela propôs um relacionamento romântico. A denúncia foi feita posteriormente.

A resistência não precisa ser física ou feroz.
Quanto à ausência de resistência mais severa, o dispositivo do Código Penal que tipifica o delito de estupro não exige determinado comportamento ou forma de resistência da vítima. Exige sim, implicitamente, o dissenso, o que deveria ter sido respeitado prontamente.

Identifica-se aqui, semelhante ao que ocorreu no caso julgado por esta Corte (REsp n. 2.005.618/RJ), a tentativa de camuflar a discriminação contra as mulheres com a suposta necessidade de um rigoroso standart probatório, inexistente para outras modalidades de crimes, a exemplo da exigência de resistência física enérgica ou heroica, da desqualificação moral da vítima, do desvalor do depoimento da ofendida, dentre outros.

Assim, o fato de a vítima não ter reagido física ou ferozmente não exclui o crime, já que houve o dissenso claro, inclusive, reiterado. Aliás, tampouco o fato de a vítima, por fim, ter se submetido ao ato, esperando terminar, afasta o crime violento perpetrado, se demonstrada a expressa discordância. A (relativa) passividade, após a internalização de que a resistência ativa não será capaz de impedir o ato, não é, por diversos fatores, incomum em delitos dessa natureza.

No caso, entendeu-se que a conclusão pela não caracterização do delito não pode decorrer das atitudes posteriores da vítima.
Se as relações humanas fossem como a ciência exata da matemática ou vivêssemos em tempos passados, talvez, e ainda somente talvez, pudéssemos pensar em excluir a prática de crime tão violento por simples trocas posteriores de mensagens ou, quem sabe, pelo fato de a vítima não ter forças ou não aguentar mais resistir à brutalidade a que está sendo submetida e parar de reagir e somente torcer para que a violência chegasse logo ao fim. Mas a realidade é muito mais complexa. A conclusão pela não caracterização do delito não pode decorrer de atitudes posteriores de quem foi ofendida e que, possivelmente, ainda que de forma inconsciente, pode estar buscando mecanismos para diminuir o peso errôneo da culpa ou mesmo sobreviver mental e fisicamente à violência a que fora exposta.

Por fim, o Tribunal de origem, ao desacreditar a palavra da vítima em função de seu comportamento posterior e indicar a inexistência de testemunhas presenciais, afastou-se da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, há muito consolidada, de que o depoimento da vítima, em crimes sexuais, possui especial valor probante, notadamente no caso concreto em que há inúmeros outros relatos de outras ofendidas que suportaram semelhante modus operandi.
STJ. Processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador convocado do TJDFT), Rel. para acórdão Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, por maioria, julgado em 13/08/2024, DJe 16/08/2024 (info 822).

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