Pessoas com deficiência podem ser consideradas hipervulneráveis e, por isso, a legitimidade de representação destes em juízo deve ser ampla.
Quanto mais democrática uma sociedade, maior e mais livre deve ser o grau de acesso aos tribunais que se espera seja garantido pela Constituição e pela lei à pessoa, individual ou coletivamente.
Na Ação Civil Pública, em caso de dúvida sobre a legitimação para agir de sujeito intermediário – Ministério Público, Defensoria Pública e associações, p. ex. –, sobretudo se estiver em jogo a dignidade da pessoa humana, o juiz deve optar por reconhecê-la e, assim, abrir as portas para a solução judicial de litígios que, a ser diferente, jamais veriam seu dia na Corte.
A categoria ético-política, e também jurídica, dos sujeitos vulneráveis inclui um subgrupo de sujeitos hipervulneráveis, entre os quais se destacam, por razões óbvias, as pessoas com deficiência física, sensorial ou mental.
É dever de todos salvaguardar, da forma mais completa e eficaz possível, os interesses e direitos das pessoas com deficiência, não sendo à toa que o legislador refere-se a uma “obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade” (Lei 7.853/89, art. 1°, § 2°, grifo acrescentado).
A tutela dos interesses e direitos dos hipervulneráveis é de inafastável e evidente conteúdo social, mesmo quando a Ação Civil Pública, no seu resultado imediato, aparenta amparar uma única pessoa apenas.
É que, nesses casos, a ação é pública, não por referência à quantidade dos sujeitos afetados ou beneficiados, em linha direta, pela providência judicial (= critério quantitativo dos beneficiários imediatos), mas em decorrência da própria natureza da relação jurídica-base de inclusão social imperativa.
Tal perspectiva, que se apóia no pacto jurídico-político da sociedade, apreendido em sua globalidade e nos bens e valores ético-políticos que o abrigam e o legitimam, realça a necessidade e a indeclinabilidade de proteção jurídica especial a toda uma categoria de indivíduos (= critério qualitativo dos beneficiários diretos), acomodando um feixe de obrigações vocalizadas como jus cogens.
Ao se proteger o hipervulnerável, a rigor quem verdadeiramente acaba beneficiada é a própria sociedade, porquanto espera o respeito ao pacto coletivo de inclusão social imperativa, que lhe é caro, não por sua faceta patrimonial, mas precisamente por abraçar a dimensão intangível e humanista dos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Assegurar a inclusão judicial (isto é, reconhecer a legitimação para agir) dessas pessoas hipervulneráveis, inclusive dos sujeitos intermediários a quem incumbe representá-las, corresponde a não deixar nenhuma ao relento da Justiça por falta de porta-voz de seus direitos ofendidos.
O Ministério Público possui legitimidade para ajuizar ação civil pública para garantir o fornecimento de órteses e próteses às pessoas com deficiência.
Maior razão ainda para garantir a legitimação do Parquet se o que está sob ameaça é a saúde do indivíduo com deficiência, pois aí se interpenetram a ordem de superação da solidão judicial do hipervulnerável com a garantia da ordem pública de bens e valores fundamentais – in casu não só a existência digna, mas a própria vida e a integridade físico-psíquica em si mesmas, como fenômeno natural.
A possibilidade, retórica ou real, de gestão individualizada desses direitos (até o extremo dramático de o sujeito, in concreto, nada reclamar) não os transforma de indisponíveis (porque juridicamente irrenunciáveis in abstracto) em disponíveis e de indivisíveis em divisíveis, com nome e sobrenome. Será um equívoco pretender lê-los a partir da cartilha da autonomia privada ou do ius dispositivum, pois a ninguém é dado abrir mão da sua dignidade como ser humano, o que equivaleria, por presunção absoluta, a maltratar a dignidade de todos, indistintamente.
O Ministério Público possui legitimidade para defesa dos direitos individuais indisponíveis, mesmo quando a ação vise à tutela de pessoa individualmente considerada. Precedentes do STJ.
Deve-se, concluir, por conseguinte, pela legitimidade do Ministério Público para ajuizar, na hipótese dos autos, Ação Civil Pública com o intuito de garantir fornecimento de prótese auditiva a portador de deficiência.
STJ. REsp n. 931.513/RS, relator Ministro Carlos Fernando Mathias (juiz Federal Convocado do TRF 1ª Região), relator para acórdão Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 25/11/2009, DJe de 27/9/2010.