Caso concreto adaptado.
Cleiton e Raquel são casados. Quando o filho do casal, Caio, tinha 10 anos de idade, surgiram suspeitas de que o verdadeiro pai biológico da criança seria Sérgio.

De comum acordo, foi realizado um exame de DNA em clínica particular e o resultado atestou que Sérgio é o verdadeiro pai biológico de Caio.

De posse do laudo, as partes realizaram um acordo extrajudicial pelo qual seria substituído o nome do pai biológico no registro de nascimento de Caio. Após, levaram o acordo à homologação judicial. O juiz, então, abriu vistas ao Ministério Público e homologou o acordo.

O acordo poderia ser homologado?
Não. É inadmissível a homologação, em juízo, de acordo extrajudicial de retificação de registro civil de menor, pois os direitos da personalidade não podem ser transacionados e o procedimento de retificação de registro deve observar a forma prevista em lei.

A transação tratou sobre direito de personalidade, não admitindo transação.
É relevante destacar, ainda, que as partes ajuizaram, em 29/10/2014, ação de homologação de acordo para anulação parcial de assento civil e reconhecimento de paternidade, quando o menor M A C M, nascido em 21/02/2004, possuía pouco mais de 10 (dez) anos, tendo como causa de pedir a existência de vínculo com o pai biológico e a inexistência de vínculo socioafetivo com o pai registral. A pretensão foi acolhida em 1º grau de jurisdição e posteriormente mantida pelo TJ/MS.

Em primeiro lugar, anote-se que o objeto da transação alinhavada pelas partes é, indiscutivelmente, um dos direitos fundamentais de maior relevância ao ser humano: os direitos à filiação e à identidade genética integram uma parcela muito significativa dos direitos da personalidade, que, sabidamente, são inalienáveis, vitalícios, intransmissíveis, extrapatrimoniais, irrenunciáveis, imprescritíveis e oponíveis erga omnes, tratando-se de expressiva concretização do conceito de dignidade da pessoa humana.
(…)
Além disso, o negócio jurídico celebrado pelas partes teve como objeto um direito personalíssimo, sobre o qual não se admite a transação, o que se depreende da interpretação a contrario sensu do art. 841 do CC/2002.

Acordo tem objeto ilícito.
A propósito, é bastante razoável afirmar, inclusive, que o referido negócio jurídico sequer preenche os requisitos básicos previstos no art. 104, II e III, do CC/2002, uma vez que se negociou objeto ilícito – direitos da personalidade de um menor que possuía 10 (dez) anos por ocasião da transação – sem que tenha sido observada a forma prescrita em lei quando se trata de retificação de registros civis.

Também causa espanto que não se tenha apurado, ou ao menos se cogitado, de demonstrar a existência de erro ou de falsidade do registro deste menor, condições sine qua non para que se possa modificar o registro de nascimento, na forma do art. 1.604 do CC/2002.

Papel do Ministério Público.
De outro lado, é estarrecedor que, em uma questão desta índole, tenha-se relegado o Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul ao papel de mero opinante no feito – como se a sua oitiva fosse um simples rito de passagem – obrigatório, mas irrelevante – pois, mesmo quando atua como fiscal da lei, o Parquet tem o direito de exercer o efetivo contraditório, que somente se materializa quando lhe é ofertada a oportunidade de produzir provas para influenciar a formação da convicção do julgador.

O exame de DNA não foi produzido em juízo.
É igualmente surpreendente que, a pretexto do princípio da instrumentalidade das formas, um exame de DNA realizado em clínica particular tenha sido utilizado pelo juízo como meio de prova válido para homologar o acordo extrajudicial entabulado pelos recorridos, especialmente porque a prova pericial válida é aquela submetida ao crivo judicial, em que se deve observar o efetivo contraditório e a ampla defesa, com a possibilidade de acompanhamento da produção da prova por todos os atores do processo, com oportuna quesitação, diligências, participação do assistente técnico e produção de laudos técnicos convergentes ou divergentes.

Ausência de verificação da existência de paternidade socioafetiva.
Finalmente, mas não menos relevante. Também causa profunda perplexidade que se admita a solução de controvérsia de tamanha relevância sem a realização de estudos psicossociais de amplo espectro e com profissionais de distintas habilidades, contentando-se o acórdão local com uma simples declaração dos recorridos de que inexistiria vínculo socioafetivo entre o menor e o pai registral.

Isso porque se trata de questão que deve ser amplamente examinada em todas as situações que se cogite a retificação de registro civil, sobretudo de um menor, não se limitando apenas a ótica da relação estabelecida entre o menor e o pai registral, mas também sob o prisma das relações afetivas eventualmente existentes entre o menor e a família extensa do pai registral (avós, irmãos, primos, tios, etc.).
Assim, por qualquer ângulo que se examine a questão em debate, conclui-se ser inviável o pedido de homologação de acordo extrajudicial para retificação de registro civil.
STJ. REsp n. 1.698.717/MS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/6/2018, DJe de 7/6/2018.

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