Caso concreto.
No caso, a suposta vítima relatou a uma guarnição policial, em fevereiro de 2022, que havia sido agredida verbal e fisicamente pelo namorado na casa dele. Ela foi submetida a exame pericial, que confirmou múltiplas lesões no corpo. No entanto, por considerar as provas frágeis, a Promotoria de Justiça estadual requereu o encerramento do inquérito, sem determinar outras diligências para apurar a possível situação de violência contra a mulher. O pedido foi homologado pelo juízo de primeiro grau (ao tempo, o procedimento de arquivamento do inquérito exigia a manifestação judicial tendo em vista a suspensão da eficácia da alteração promovida no art. 28 do CPP pela Lei nº 13.964/2019 nos autos da ADI nº 6.305).

A possível vítima pediu a reconsideração do arquivamento, porém a promotora e o juízo se manifestaram contra. Ela requereu a revisão do arquivamento pelo procurador-geral, o que foi igualmente indeferido pelo juízo de primeiro grau. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negou a reanálise do caso.

A vítima, então, impetrou Mandado de Segurança pedindo o desarquivamento do caso.

Sob a égide da antiga redação do art. 28 do CPP, a decisão que determinava o arquivamento do inquérito policial era irrecorrível.
Por ausência de previsão legal, a jurisprudência majoritária no Superior Tribunal de Justiça compreende que a decisão do Juiz singular que, a pedido do Ministério Público, determinava o arquivamento de inquérito policial, nos termos da antiga redação do art. 28 do CPP, era irrecorrível.

Possibilidade excepcional de impetrar Mandado de Segurança em face da decisão de arquivamento.
Todavia, em hipóteses excepcionalíssimas, nas quais há flagrante violação a direito líquido e certo da vítima, esta Corte Superior tem admitido o manejo do mandado de segurança para impugnar a decisão de arquivamento.

A admissão do mandado de segurança na espécie encontra fundamento no dever de assegurar às vítimas de possíveis violações de direitos humanos, como ocorre nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, o direito de participação em todas as fases da persecução criminal, inclusive na etapa investigativa, conforme determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em condenação proferida contra o Estado brasileiro.

Dever de observância dos tratados internacionais de direitos humanos.
O exercício da ação penal em contextos de violência contra a mulher constitui verdadeiro instrumento para garantir a observância dos direitos humanos, devendo ser compreendido, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, como parte integrante da obrigação do Estado brasileiro de garantir o livre e pleno exercício destes direitos a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição e de assegurar a existência de mecanismos judiciais eficazes para proteção contra atos que os violem, conforme se extrai:

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto n. 678/92):
ARTIGO 1 – Obrigação de Respeitar os Direitos
1. Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.
2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.
(…)
ARTIGO 25 – Proteção Judicial
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
2. Os Estados-Partes comprometem-se:
a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;
b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Decreto n. 1.973/1996):
Artigo 7. Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em:
b) agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punira violência contra a mulher;

Caso Favela Nova Brasília v. Brasil.
O caso Favela Nova Brasília vs. Brasil refere-se a duas operações policiais em 1994 e 1995 na favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro, resultando em 26 execuções e 3 vítimas de tortura e violência sexual por forças policiais. O caso destaca problemas de brutalidade policial e falta de investigações eficazes no Brasil.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao proferir condenação contra o Brasil no caso Favela Nova Brasília v. Brasil, reforçou que os países signatários da Convenção Americana tem o dever de, diante da notícia de violações de direitos humanos, agir com a devida diligência para promover uma investigação séria, imparcial e efetiva do ocorrido, no âmbito das garantias do devido processo.

Em especial quanto ao arquivamento de inquéritos sem que houvesse prévia investigação empreendida com a devida diligência, a Corte Interamericana censurou a conduta do Poder Judiciário brasileiro que, naquele caso, “não procedeu a um controle efetivo da investigação e se limitou a manifestar estar de acordo com a Promotoria, o que foi decisivo para a impunidade dos fatos e a falta de proteção judicial dos familiares.

Caso Barbosa de Souza e outros v. Brasil
O Caso Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil destacou a violência estrutural e generalizada contra mulheres no Brasil, levando à condenação do país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O caso trouxe à tona a ausência de estatísticas nacionais anteriores aos anos 2000, dificultando a implementação de políticas públicas eficazes. A Corte reconheceu uma cultura de tolerância à violência contra a mulher, evidenciada pela representação midiática e altas taxas de feminicídio, sublinhando a necessidade urgente de medidas efetivas para proteção dos direitos humanos das mulheres.

No caso Barbosa de Souza e outros v. Brasil, a Corte Interamericana novamente fez uma alerta ao Poder Judiciário brasileiro, destacando que “a ineficácia judicial frente a casos individuais de violência contra as mulheres propicia um ambiente de impunidade que facilita e promove a repetição de fatos de violência em geral” e “envia uma mensagem segundo a qual a violência contra as mulheres pode ser tolerada e aceita, o que favorece sua perpetuação e a aceitação social do fenômeno, o sentimento e a sensação de insegurança das mulheres, bem como sua persistente desconfiança no sistema de administração de justiça”.

Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), orienta a prática judiciária para garantir que o gênero seja considerado como uma categoria de análise nas decisões judiciais. O objetivo é promover a igualdade de gênero e combater a discriminação, assegurando que a justiça seja aplicada de maneira a reconhecer e corrigir as desigualdades existentes entre diferentes gêneros. Este protocolo é um guia para a atuação do judiciário, visando a proteção dos direitos das mulheres e a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária.

No caso concreto (RMS n. 70.338/SP), não houve atendimento ao protocolo.
No caso, a decisão que homologou o arquivamento do inquérito foi proferida sem que fosse empregada a devida diligência na investigação e com inobservância de aspectos básicos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, em especial quanto à valoração da palavra da vítima, corroborada por outros indícios probatórios, que assume inquestionável importância quando se discute violência contra a mulher.

O encerramento prematuro das investigações, aliada às manifestações processuais inconsistentes nas instâncias ordinárias, denotam que não houve a devida diligência na apuração de possíveis violações de direitos humanos praticadas contra a Recorrente, em ofensa ao seu direito líquido e certo à proteção judicial, o que lhe é assegurado pelo art. 1.º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, c.c. o art. 7.º, alínea b, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
STJ. RMS 70.338-SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 22/8/2023 (info 785).

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