Exemplo didático.
Carlos, servidor público, foi acusado por supostamente favorecer a Empresa X em licitação. Beatriz, Administradora da empresa, também foi acusada. Ao final, Carlos foi condenado, entretanto, Beatriz foi inocentada. Em relação a Beatriz, o juiz entendeu que não ficou demonstrada qualquer ação dolosa.
Apesar da absolvição de Beatriz, ainda existe uma ação penal em curso. Por isso, o advogado de Beatriz impetra um Habeas Corpus pedindo o trancamento da ação penal sob a alegação de que já foi reconhecido em sede de ação civil pública por improbidade administrativa a ausência dolo e que isso, portanto, implica em ausência de justa causa para a ação penal.
O Habeas Corpus deve ser concedido?
Sim. No julgamento da ação de improbidade administrativa, a absolvição por ausência de dolo e de obtenção de vantagem indevida na conduta esvazia a justa causa para manutenção da ação penal.
Apesar da independência das esferas cível, penal e administrativa, os argumento utilizados na ação cível podem influenciar na decisão no âmbito penal.
A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça cristalizou-se no sentido de que as esferas civil, penal e administrativa são independentes e autônomas entre si, de tal sorte que as decisões tomadas nos âmbitos administrativo ou cível não vinculam a seara criminal”. (EDcl no AgRg no REsp n. 1.831.965/RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 7/12/2020, DJe de 18/12/2020.).
É pertinente, todavia, na esfera penal, considerar os argumentos contidos na decisão absolutória na via da improbidade administrativa como elementos de persuasão (REsp n. 1.847.488/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 20/4/2021, DJe de 26/4/2021).
Particularidades do caso concreto.
A hipótese dos autos apresenta particularidades uma vez que a paciente foi absolvida em virtude da ausência do elemento subjetivo dos particulares.
Ficou consignado pela instância cível que a prova da apuração judicial demonstra apenas o dolo do gestor público, não justificando a condenação dos particulares. Destacou-se, ademais, que a pessoa jurídica nem ao menos logrou êxito em ser a primeira colocada entre os concorrentes na dispensa de licitação, precisando baixar seu preço para ser escolhida, diante do descredenciamento da primeira colocada. Por fim, registrou-se que não se auferiu benefício, uma vez que o contrato foi anulado pela Corte de Contas.
A ausência do requisito subjetivo provado interfere na caracterização da própria tipicidade do delito.
Como é de conhecimento, a independência das esferas tem por objetivo o exame particularizado do fato narrado, com base em cada ramo do direito, devendo as consequências cíveis e administrativas ser aferidas pelo juízo cível e as repercussões penais pelo Juízo criminal, dada a especialização de cada esfera. No entanto, as consequências jurídicas recaem sobre o mesmo fato.
Nessa linha de intelecção, não é possível que o dolo da conduta em si não esteja demonstrado no juízo cível e se revele no juízo penal, porquanto se trata do mesmo fato, na medida em que a ausência do requisito subjetivo provado interfere na caracterização da própria tipicidade do delito, mormente se se considera a doutrina finalista (que insere o elemento subjetivo no tipo), bem como que os fatos aduzidos na denúncia não admitem uma figura culposa, culminando-se, dessa forma em atipicidade, ensejadora do trancamento ora visado.
STJ. RHC n. 173.448/DF, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 13/3/2023.