Exemplo didático.
Imagine uma família composta por Maria, sua filha Ana e o companheiro de Maria, João. Maria e João estão em uma união estável desde 2006, quando Ana tinha 13 anos. João sempre exerceu o papel de pai na vida de Ana, participando ativamente da sua criação e desenvolvimento. Agora, Ana tem 27 anos e João deseja formalizar a relação de paternidade afetiva que sempre existiu entre eles, adotando Ana legalmente.
João nasceu em 20 de março de 1980, e Ana nasceu em 3 de setembro de 1992. Isso significa que João é apenas 12 anos mais velho que Ana. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para que a adoção seja permitida, o adotante deve ser pelo menos 16 anos mais velho que o adotando. No entanto, João e Ana têm uma relação de pai e filha consolidada ao longo dos anos, baseada em afeto e convivência familiar estável.
É possível relativizar a exigência do ECA (diferença mínima de 16 anos entre adotante e adotado)?
Sim. A diferença etária mínima de 16 (dezesseis) anos entre adotante e adotado pode ser flexibilizada à luz do princípio da socioafetividade. STJ. 3ª Turma. REsp 1.785.754-RS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 08/10/2019 (Info 658).
A regra que estabelece a diferença mínima de 16 (dezesseis) anos de idade entre adotante e adotando (art. 42, § 3º do ECA) pode, dada as peculiaridades do caso concreto, ser relativizada no interesse do adotando. STJ. REsp 1.338.616-DF, R. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, unanimidade, julg. 15/06/2021 (info 701).
Qual a finalidade da norma?
A ratio essendi da referida imposição legal tem por base o princípio de que a adoção deve imitar a natureza (adoptio natura imitatur). Ou seja: a diferença de idade na adoção tem por escopo, principalmente, assegurar a semelhança com a filiação biológica, viabilizando o pleno desenvolvimento do afeto estritamente maternal ou paternal e, de outro lado, dificultando a utilização do instituto para motivos escusos, a exemplo da dissimulação de interesse sexual por menor de idade.
No caso concreto, é possível mitigar o requisito da diferença etária mínima.
Extraindo-se o citado conteúdo social da norma e tendo em vista as peculiaridades do caso concreto, revela-se possível mitigar o requisito de diferença etária entre adotante e adotanda maior de idade, que defendem a existência de vínculo de paternidade socioafetiva consolidado há anos entre ambos, em decorrência de união estável estabelecida entre o autor e a mãe biológica, que inclusive concorda com a adoção unilateral.
Apesar de o adotante ser apenas doze anos mais velho que a adotanda, verifica-se que a hipótese não corresponde a pedido de adoção anterior à consolidação de uma relação paterno-filial, o que, em linha de princípio, justificaria a observância rigorosa do requisito legal.
À luz da causa de pedir deduzida na inicial de adoção, não se constata o objetivo de se instituir uma família artificial – mediante o desvirtuamento da ordem natural das coisas -, tampouco de se criar situação jurídica capaz de causar prejuízo psicológico à adotanda, mas sim o intuito de tornar oficial a filiação baseada no afeto emanado da convivência familiar estável e qualificada.
Nesse quadro, uma vez concebido o afeto como o elemento relevante para o estabelecimento da parentalidade e à luz das especificidades narradas na exordial, o pedido de adoção deduzido pelo padrasto – com o consentimento da adotanda e de sua mãe biológica (atualmente, esposa do autor) – não poderia ter sido indeferido sem a devida instrução probatória (voltada à demonstração da existência ou não de relação paterno-filial socioafetiva no caso), revelando-se cabível, portanto, a mitigação do requisito de diferença mínima de idade previsto no § 3º do artigo 42 do ECA.
STJ. REsp n. 1.717.167/DF, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 11/2/2020, DJe de 10/9/2020.