Nulidade do ingresso em domicílio decorrente da existência de constrangimento ambiental/circunstancial no momento da suposta autorização de ingresso.
Mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho – sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos –, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento (caso provado), em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial. Isso porque a prova do consentimento do morador para a realização de busca domiciliar é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para legitimá-la, porquanto deve ser assegurado que tal consentimento, além de existente, seja válido, isto é, livre de vícios aptos a afetar a manifestação de vontade.

Na doutrina e na jurisprudência norte-americanas, dedicadas há décadas a analisar o tema do consentimento do morador, a compreensão geral é a de que, para ser válido, ele “deve ser inequívoco, específico e conscientemente dado, não contaminado por qualquer truculência ou coerção.

Em Scheneckloth v. Bustamonte, 412 U.S. 218 (1973), a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu algumas orientações sobre o significado do termo “consentimento”.
Decidiu-se que as buscas mediante consentimento do morador (ou, como no caso, do ocupante do automóvel onde se realizou a busca) são permitidas, “mas o Estado carrega o ônus de provar ‘que o consentimento foi, de fato, livre e voluntariamente dado’”.

O consentimento não é livre quando de alguma forma se percebe uma coação da sua vontade.
A Corte indicou que o teste da “totality of circumstances” deve ser aplicado mentalmente, considerando fatores subjetivos, relativos ao próprio suspeito (i.e., se ele é particularmente vulnerável devido à falta de estudos, baixa inteligência, perturbação mental ou intoxicação por drogas ou álcool) e fatores objetivos que sugerem coação (se estava detido, se os policiais estavam com suas armas à vista, ou se lhe disseram ter o direito de realizar a busca, ou exercitaram outras formas de sutil coerção), entre outras hipóteses que poderiam interferir no livre assentimento do suspeito. Em geral, “quando um promotor se apoia no consentimento para justificar a legalidade de uma busca, ele tem o ônus de provar que o consentimento foi, de fato, dado livre e voluntariamente”.

Diretrizes para aferir a validade do ingresso domiciliar por agentes policiais.
São as seguintes as diretrizes construídas pela Suprema Corte para aferir a validade do ingresso domiciliar por agentes policiais:
1. Número de policiais;
2. Suspeito cercado de policiais;
3. Atitude dos policiais;
4. Exigência da busca;
5. Ameaças ao suspeito;
6. Hora da diligência.

Coação no Código Civil.
O art. 152 do Código Civil, ao disciplinar a coação como um dos vícios do consentimento nos negócios jurídicos, dispõe que: “No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela”. De acordo com a doutrina, a declaração de vontade diz respeito à existência do negócio, mas só se poderá considerar válida tal declaração (plano da validade) se assegurada a sua total lisura.

Se, no Direito Civil, que envolve, em regra, direitos patrimoniais disponíveis, em uma relação equilibrada entre particulares, todas as circunstâncias que possam influir na liberdade da manifestação de vontade devem ser consideradas, com muito mais razão isso deve ocorrer no Direito Penal (lato sensu), que trata de direitos indisponíveis de um indivíduo diante do poderio do Estado, em relação manifestamente desigual.

É justamente essa disparidade de forças, aliás, somada à ausência de liberdade negocial concreta, que leva ao frequente reconhecimento da invalidade da manifestação de vontade da parte hipossuficiente no âmbito do Direito do Consumidor, mesmo quando externada por escrito e relativa a direitos disponíveis, em virtude da abusividade de cláusulas impostas pelo lado mais forte, nos termos, por exemplo, do art. 51, IV do Código de Defesa do Consumidor.

Aqui não se trata de coação explícita, mas sim implícita.
Não se pretende, em absoluto, relacionar a invalidade da manifestação de vontade do réu, necessariamente, à constatação de violência policial explícita e dolosa, vale dizer, à existência de coação direta. Conforme se demonstrou acima, com base na jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, muitas vezes o constrangimento pode ser causado implicitamente pelo aparato policial ao indivíduo em virtude de circunstâncias objetivas da abordagem em cotejo com as condições pessoais do sujeito interpelado. A coação é circunstancial.

Em outras palavras, não se trata de menoscabar a valorosa atividade policial ou de presumir a prática de abuso por parte dos agentes de segurança pública, mas apenas de se ponderar o receio e a impossibilidade concreta dos cidadãos, em certos contextos fáticos, de contrariar as solicitações feitas por autoridades estatais.

Para auxiliar na compreensão desta ideia, é pertinente lembrar do chamado metus publicae potestatis, consistente no temor do particular diante de uma autoridade pública (em tradução literal “medo do poder público”), figura considerada pela doutrina para distinguir, por exemplo, o crime de extorsão do crime de concussão, tipo penal cujo núcleo “exigir” pode se configurar em razão dessa intimidação contextual/ambiental, a despeito da ausência de violência ou ameaça expressas por parte do funcionário público.

No caso concreto, existiam elementos concretos para apontar a existência de coação ambiental/circunstancial.
Na hipótese dos autos, uma vez que o acusado já estava preso por porte de arma de fogo em via pública, sozinho, diante de dois policiais armados, sem a opção de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos, não é crível que estivesse em plenas condições de prestar livre e válido consentimento para que os agentes de segurança estendessem a diligência com uma varredura especulativa auxiliada por cães farejadores em seu domicílio à procura de drogas, a ponto de lhe impor uma provável condenação de 5 a 15 anos de reclusão, além da pena prevista para o crime do art. 14 do Estatuto do Desarmamento, no qual já havia incorrido. STJ. HC 762.932-SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 22/11/2022, DJe 30/11/2022 (info 760)

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