Controvérsia.
A controvérsia cinge-se em saber se o ordenamento jurídico vigente à época dos fatos, em especial os artigos 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997, permitia que organizações societárias criassem pessoas jurídicas apenas com a finalidade de produzir ágio artificial destinado a reduzir as bases tributáveis do IRPJ e da CSLL.
Ágio.
O ordenamento jurídico brasileiro passou a tratar da figura do ágio por meio do Decreto-Lei n. 1.598/1977, podendo ser conceituado como preço adicional ao custo de aquisição de participação societária, representado pela diferença positiva entre o custo de aquisição e o valor contábil do investimento adquirido, justificada pela perspectiva de obtenção de receitas futuras.
Em outras palavras, a empresa adquirente aceita pagar pela aquisição valor superior ao contabilizado no patrimônio líquido da empresa adquirida, considerando a expectativa de auferimento de lucros, que necessariamente deve ser justificada mediante demonstração contábil.
O ágio é passível de amortização na apuração de resultado da empresa investidora, impedindo o reconhecimento de ganhos inexistentes.
Sob as perspectivas contábil e societária, o ágio é passível de amortização na apuração de resultado da empresa investidora, impedindo o reconhecimento de ganhos inexistentes. Ou seja, a rentabilidade da sociedade adquirida não constituirá lucro da sociedade investidora até o montante equivalente ao ágio pago. Uma vez que, sendo neutralizado o ágio, os resultados positivos da empresa investida refletem no aumento do patrimônio da investidora.
Exemplo didático…
Imagine que a Empresa A deseja adquirir a Empresa B. A situação contábil da Empresa B é a seguinte:
Patrimônio Líquido da Empresa B: R$ 5 milhões
Valor de Mercado da Empresa B: R$ 7 milhões
A Empresa A decide pagar o valor de mercado de R$ 7 milhões para adquirir a Empresa B, acreditando que a Empresa B tem um grande potencial de crescimento e que essa aquisição trará lucros futuros significativos. Portanto, a Empresa A pagou R$ 2 milhões de ágio, que deve ser baseado em projeções financeiras e demonstrações contábeis que mostrem o potencial de crescimento da Empresa B.
Amortização do Ágio.
A Empresa A decide amortizar o ágio de R$ 2 milhões ao longo de 10 anos. Isso significa que a cada ano, R$ 200 mil do ágio serão amortizados e contabilizados como uma despesa no resultado da Empresa A. Isso refletirá, por exemplo, na distribuição dos lucros aos acionistas.
Portanto, durante o período de amortização, a Empresa A não reconhecerá como lucro os resultados positivos da Empresa B até que o ágio seja completamente amortizado. Isso evita que a Empresa A reporte lucros inflacionados que não refletem a realidade econômica da transação.
Voltando ao julgado…
Sob a perspectiva fiscal, o ágio é tratado de forma distinta.
Entretanto, sob a perspectiva fiscal, o ágio é tratado de forma distinta, uma vez que a legislação tributária impõe que todo ágio ou deságio contabilmente amortizado deve ter seus efeitos fiscais anulados perante o IRPJ e CSLL, enquanto não houver a alienação ou liquidação do investimento adquirido.
Paralelamente a isso, o registro contábil é preservado para futuro aproveitamento quando da alienação, momento em que é autorizada a integração do ágio ao custo de aquisição para apuração do ganho de capital.
Mais um exemplo didático…
Imagine o mesmo cenário, em que a Empresa A decide pagar o valor de mercado de R$ 7 milhões para adquirir a Empresa B, com um ágio de R$ 2 milhões. Esse ágio não poderá, inicialmente ser utilizado para abater a base de cálculo do IRPJ ou da CSLL.
Por outro lado, se um ano depois a Empresa A vende a Empresa B por R$ 8 milhões, como será calculado o ganho de capital?
Nesse caso, o ganho de capital será de R$ 1 milhão, sendo essa a base de cálculo dos impostos que incidirem. Portanto, a base de cálculo é a diferença entre o valor recebido e o valor efetivamente pago, ainda que o valor pago tenha algum ágio em relação a quanto a empresa adquirida efetivamente valia em termos patrimoniais.
Voltando novamente ao julgado…
E se a empresa adquirida for incorporada?
Exceção à regra ocorre apenas na hipótese em que a empresa investida é incorporada pela investidora, porque não mais subsiste a possibilidade de sua alienação, impossibilitando a recuperação fiscal do ágio em face dos itens patrimoniais da investida se fundirem e se confundirem com os da própria investidora.
A Lei n. 9.532/1997 estabeleceu um caminho natural em que determinada empresa, adquirindo participação societária com ágio, ao incorporar a empresa coligada ou controlada, poderia amortizar esse valor de rentabilidade futura na base de cálculo do IRPJ e da CSLL devidos. Tudo isso com o objetivo específico de afastar da tributação o eventual ganho futuro que, em verdade, somente poderia ser aferido em posterior venda, frustrada pela extinção da empresa adquirida.
Mais um exemplo didático…
Imagine o mesmo cenário, em que a Empresa A decide pagar o valor de mercado de R$ 7 milhões para adquirir a Empresa B, com um ágio de R$ 2 milhões. Esse ágio não poderá, inicialmente ser utilizado para abater a base de cálculo do IRPJ ou da CSLL.
Ocorre que a Empresa A resolve incorporar a Empresa B (portanto, a empresa B deixará passará a fazer parte da Empresa A).
Nesse caso, como seria impossível uma venda futura (já que a Empresa B já não existe), a Empresa A poderá excepcionalmente abater o valor do ágio na aquisição para abater a base de cálculo do IRPJ ou da CSLL.
Voltando ao julgado…
Ágio interno, ou ágio próprio, ou ágio de si mesmo
No caso específico do ágio interno, ou ágio próprio, ou ágio de si mesmo, uma característica necessária é a inexistência de qualquer relação jurídica com membros que não fazem parte do mesmo grupo societário. É dizer, todas as operações acontecem entre partes vinculadas. Outro ponto indispensável para se caracterizar o ágio de si mesmo é a completa ausência de operação societária envolvendo a efetiva transferência de recursos financeiros.
Empresa veículo.
Finalmente, e este é um evento havido no caso concreto, o ágio interno pode ser gerado por meio de uma chamada “empresa veículo”, cuja existência no mundo jurídico somente se justifica para criar a mais valia para o grupo societário. Cuida-se de sociedade completamente desprovida de propósito negocial em absoluto descompasso com o regime do direito societário. Não há “empresa” nos termos definidos pelo Código Civil, porque não há exercício de atividade econômica organizada para a circulação de bens ou serviços, e, exatamente neste ponto, pode-se identificar o abuso de direito caracterizado pelo abuso da personalidade jurídica.
Sobre o ágio interno e sua relação com o abuso de direito, é importante mencionar que este abuso, para que seja considerado antijurídico, demanda, para além da utilização de um instituto para fins aos quais o ordenamento não o destina, que esta utilização afete direito de terceiros, ainda que não haja a intenção de prejudicar por parte daquele que o exerce. A inexistência de direitos absolutos e a limitação destes direitos a partir do momento em que outros direitos ou prerrogativas são atingidos é lugar comum em assertivas gerais e abstratas, mas que encerram dificuldades quando é necessária a aplicação destas premissas nos casos concretos.
Sob essas lentes, não são admissíveis as conclusões de que se admite que a liberdade de auto-organização comporta a construção de estruturas artificiais para a economia de tributos. É evidente que não se está a defender o argumento pueril de que a economia de tributos só pode acontecer de maneira “casual”. O contribuinte pode sim organizar seus negócios de maneira a escolher o caminho menos oneroso tributariamente, desde que as estruturas jurídicas utilizadas se compatibilizem com o ordenamento jurídico, exatamente porque a liberdade contratual se limita aos termos em que o constituinte concebeu esta e outras prerrogativas.
O último exemplo didático… prometo…
Imagine o mesmo cenário, em que a Empresa A decide pagar o valor de R$ 7 milhões para adquirir a Empresa B, com um ágio de R$ 2 milhões. Posteriormente, resolve incorporar a empresa para utilizar o ágio no abatimento da sua base de cálculo de tributos.
Ocorre que, na verdade, a Empresa B era apenas uma “empresa veículo”. Ela não exercia nenhuma atividade econômica propriamente dita… Na verdade, ela foi criada apenas para ser vendida com ágio, que posteriormente seria utilizado para reduzir a carga tributária da empresa adquirente…
Portanto…
O abuso de direito perpetrado com a criação de estruturas artificiais para aproveitamento do ágio e pagamento a menor de tributos agride a juridicidade do ordenamento. Para além do reconhecimento legal como ato ilícito previsto no art. 187 do Código Civil, o abuso de direito no caso encerra violação dos primados da capacidade contributiva, em sua condição de corolário da própria isonomia. Por esse motivo, o abuso de direito materializado na amortização de ágio gerado em operações internas, sem nenhum propósito negocial, desrespeitou o ordenamento jurídico vigente, ensejando a neutralização dos efeitos do ato abusivo pela autoridade fiscal.
STJ. REsp 2.152.642-RJ, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 5/11/2024, DJe 11/11/2024 (info 833).