Fases do ciclo de polícia.
O ciclo de polícia é frequentemente dividido em quatro fases: ordem, consentimento, fiscalização e sanção. Vamos analisar estas fases e a possibilidade de sua delegação, conforme interpretado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ):
Ordem: Esta é a fase em que as normas e regulamentações são criadas. É o estágio inicial do ciclo de polícia, onde o Estado estabelece as regras que vão reger determinada matéria ou setor.
Consentimento: Nesta fase, o Estado, através de seus órgãos competentes, concede autorizações, licenças ou permissões para que os particulares possam exercer determinadas atividades. É um mecanismo de controle preventivo.
Fiscalização: Aqui, o Estado verifica se as normas estabelecidas na fase de legislação estão sendo cumpridas pelos particulares. É um controle que pode ser tanto preventivo quanto repressivo, dependendo do caso.
Sanção: Na última fase do ciclo, são aplicadas as penalidades previstas em lei para os casos de descumprimento das normas. Esta fase é caracterizada pelo exercício do poder sancionador do Estado.

De acordo com o entendimento consagrado pelo STJ, dentre estas fases, somente as de consentimento e fiscalização podem ser delegadas a entidades que não fazem parte da estrutura da Administração Pública. Isso porque estas fases não envolvem o exercício do poder de coerção estatal de forma direta e definitiva como as fases de ordem (legislação) e sanção.

As fases de ordem (legislação) e sanção, por sua vez, são vistas como expressões do poder de coerção do Estado, sendo, portanto, indelegáveis a entidades privadas. A fase de legislação envolve a criação de normas, um poder exclusivo do Estado. A fase de sanção, por outro lado, envolve a aplicação de penalidades, que é outra manifestação do poder coercitivo estatal.

O STJ sustenta que estas duas fases – legislação e sanção – por derivarem do poder de coerção do Estado, não podem ser delegadas a pessoas jurídicas de direito privado. Este entendimento ressalta a natureza exclusiva e essencial destas funções, que são vistas como inerentes à soberania estatal e, portanto, reservadas aos órgãos e entidades que compõem a estrutura da Administração Pública.

Caso concreto.
A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) é uma associação privada que atua no setor de energia elétrica. Ela é composta principalmente por titulares de concessão, permissão ou autorização e outros agentes vinculados aos serviços e às instalações de energia elétrica. Sua composição é essencialmente feita por pessoas jurídicas que visam lucro, embora seja uma associação civil sem fins lucrativos.

No exercício de suas atividades e com base no Decreto n. 5.177/2004 c/c Resolução Normativa ANEEL n. 109, a CCEE começou a aplicar sanções a empresas e indivíduos que, segundo ela, estavam violando as normas do setor de energia elétrica. Essa função sancionadora envolve a aplicação de multas, uma atividade que, tradicionalmente, está sob o domínio do poder de polícia exercido por órgãos públicos.

A CCEE, enquanto associação privada, pode exercer a função sancionadora do poder de polícia neste cenário?
Não, a CCEE não pode exercer a função sancionadora do poder de polícia.

Não é possível delegar a uma entidade privada as atividades de tributar e punir.
No plano da jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a questão relativa à delegação de poder de polícia administrativa a entidades privadas no julgamento da ADI n. 1.717, de relatoria do Ministro Sydney Sanches, quando concluiu pela “indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas”.

O Superior Tribunal de Justiça, ao examinar o mesmo tema de fundo do presente processo, também consagrou a tese de que, em relação às fases do “ciclo de polícia”, somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, seguindo o entendimento de que aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público, este indelegável às pessoas jurídicas de direito privado.

Distinguishing em relação ao Tema 532/STF.
Acontece que, contra a supracitada decisão do STJ, houve a interposição de Recurso Extraordinário (633782/MG), tendo sido o recurso afetado como representativo de controvérsia. Na ocasião do julgamento daquele apelo, houve a revisão parcial do entendimento do STF sobre a possibilidade de delegação da função de polícia, cristalizando o Supremo a tese de que:

#Tese de Repercussão Geral – Tema 532-STF: É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial.

No caso, porém, o precedente não se aplica, pois:
a) a CCEE é associação privada que não integra a Administração Pública;
b) não há permissão constitucional para que atue como agente delegada da função administrativa de infligir sanções;
c) os integrantes não gozam de qualquer estabilidade no emprego;
d) embora a Câmara seja associação civil sem fins lucrativos, o fato é que ela é integrada “por titulares de concessão, permissão ou autorização” e “por outros agentes vinculados aos serviços e às instalações de energia elétrica”, ou seja, ela é essencialmente composta por pessoas jurídicas que, como fim principal, visam o lucro.

Ademais, não há lei formal autorizando direta e expressamente que a CCEE aplique diretamente multas aos particulares, e depois as cobre por conta própria, na medida em que essa atribuição só é mencionada no Decreto n. 5.177/2004 c/c Resolução Normativa ANEEL n. 109.

Conclusão…
Não é possível delegar a função sancionadora do exercício do poder de polícia à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE por ser uma associação privada que não integra a Administração Pública.
STJ. REsp 1.950.332-RJ, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, por unanimidade, julgado em 26/9/2023, DJe 2/10/2023 (info 790).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Área de Membros

Escolha a turma que deseja acessar: