Exemplo didático.
E 01/02/2016, Mévio cometeu um crime de furto. Dois meses depois, Mévio cometeu um crime de lesão corporal no âmbito doméstico em face de sua esposa. Mévio foi condenado pelos dois crimes, bem como o juízo da execução procedeu a unificação das penas.
Em 2022 foi editado o decreto nº 11.302/2022, que previu a possibilidade de indulto daqueles que cometeram o crime de furto, desde que preenchidos os demais requisitos ali previstos. Já os crimes praticados com violência doméstica foram considerados crimes impeditivos do indulto. O decreto também trouxe a seguinte disposição:
Decreto nº 11.302/2022.
Art. 11, Parágrafo único. Não será concedido indulto natalino correspondente a crime não impeditivo enquanto a pessoa condenada não cumprir a pena pelo crime impeditivo do benefício, na hipótese de haver concurso com os crimes a que se refere o art. 7º, ressalvada a concessão fundamentada no inciso III do caput do art. 1º.
Como Mévio estava acometido por uma doença grave e as penas cominadas ao crime de furto eram compatíveis com a previsão do decreto, o advogado informou que Mévio poderia ser beneficiado.
Informou ainda que, apesar de Mévio ainda não ter cumprido integralmente a pena do crime de lesão corporal no âmbito de violência doméstica (crime impeditivo do indulto), isso não importaria na ausência do direito ao indulto em relação ao crime de furto já que os dois crimes não foram cometidos em concurso (o segundo crime foi cometido dois meses depois).
A informação prestada pelo advogado está correta?
Sim. Para fins de aplicação do indulto previsto no Decreto Presidencial n. 11.302/2022, os crimes cometidos em contextos diversos, fora das hipóteses de concurso, material ou formal, não se exige o cumprimento integral da pena pelos crimes impeditivos.
Mévio, que cometeu dois crimes: furto e lesão corporal. Pela legislação, o furto pode ser considerado um crime não impeditivo ao indulto, enquanto a lesão corporal grave pode ser vista como um crime impeditivo. Se esses crimes foram cometidos em um único contexto (por exemplo, durante a mesma ocorrência), estamos diante de um concurso de crimes. A questão central seria se João pode receber indulto pelo furto antes de cumprir integralmente a pena pela lesão corporal.
Controvérsia.
Cinge-se a questão a saber se é possível verificar os requisitos do indulto do Decreto n. 11.302/2022 sobre cada tipo derivado de ação penal própria, sem concurso de crimes, ou se é necessário prover a junção de crimes derivados de ações penais diversas e guias próprias na execução penal como fator para análise do preenchimento dos requisitos objetivos.
Expressão “concurso” utilizada no art. 11, parágrafo único do Decreto n. 11.302/2022.
Nos termos do art. 11, parágrafo único do Decreto n. 11.302/2022:
Decreto nº 11.302/2022.
Art. 11. Para fins do disposto neste Decreto, as penas correspondentes a infrações diversas serão unificadas ou somadas até 25 de dezembro de 2022, nos termos do disposto no art. 111 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984.
Parágrafo único. Não será concedido indulto natalino correspondente a crime não impeditivo enquanto a pessoa condenada não cumprir a pena pelo crime impeditivo do benefício, na hipótese de haver concurso com os crimes a que se refere o art. 7º, ressalvada a concessão fundamentada no inciso III do caput do art. 1º.
Com efeito, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça era de que a expressão “concurso”, utilizada pelo artigo supracitado, deveria ser compreendida em seu sentido amplo, como unificação de penas, ou seja, a prática de quaisquer desses delitos, não se referindo, apenas, nas hipóteses de concurso material e formal – arts. 69 e 70 do CP.
A Terceira Seção desta Corte, contudo, em julgamento ocorrido aos 8/11/2023, posicionou-se no sentido de que “apenas no caso de crime impeditivo cometido em concurso com crime não impeditivo que se exige o cumprimento integral da reprimenda dos delitos da primeira espécie. Em se tratando de crimes cometidos em contextos diversos, fora das hipóteses de concurso (material ou formal), não há de se exigir o cumprimento integral da pena pelos crimes impeditivos” (AgRg no HC 856.053/SC, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, DJe 14/11/2023).
O indulto deve ser interpretado restritivamente.
Na ocasião, destacou-se que o decreto de indulto deve ser interpretado restritivamente, sob pena de invasão do Poder Judiciário na competência exclusiva da Presidência da República, conforme art. 84, XII, da Constituição Federal.
Apenas no caso de concurso de crimes impeditivos e não impeditivos, dentro de um mesmo contexto, não seria possível aplicar o indulto.
Assim, partindo-se de uma interpretação restritiva do Decreto n. 11.302/2002, apenas em caso de concurso de crimes impeditivos e não impeditivos, dentro de um mesmo contexto, não seria possível aplicar o indulto, nos termos do art. 11, parágrafo único, do referido ato presidencial.
STJ. AgRg no HC 838.938-SP, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 18/3/2024, DJe 21/3/2024 (info 806).