Caso concreto adaptado.
Durante a Pandemia de COVID-19, foi editado o decreto nº 55.764/2021, do Estado do Rio Grande do Sul, determinando uma série de medidas restritivas objetivando conter o avanço da pandemia.

Michele, por sua vez, cética em relação a existência do vírus, descumpriu as medidas, inclusive mantendo seu o seu comércio aberto durante o período da proibição.

O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, denunciou Michele pelo crime do Art. 268, do Código Penal.

O Juiz de primeiro grau entendeu que o fato descrito na denúncia era atípico, posto que o art. 268, do CP é norma penal em branco, bem como, conforme justificou, não poderia ser suplementada por uma norma estadual, sob pena de violação da competência privativa da União para legislar sobre direito penal (CF, art. 22, I).

A decisão do juiz foi correta?
Não.

Norma Penal em Branco.
Uma norma penal em branco é uma lei penal que não contém todas as informações necessárias para determinar o seu alcance e aplicação. Ela requer a referência a outras leis, regulamentos, decretos, ou portarias para que se possa compreender exatamente o que é proibido ou permitido por essa norma penal.

Essas outras leis referenciadas podem ser chamadas de normas complementares ou normas preenchimento, que preenchem as lacunas deixadas pela norma penal em branco. É importante destacar que a referência a essas outras leis deve ser precisa e clara, caso contrário, pode levar a ambiguidades e interpretações divergentes.

Um exemplo comum de norma penal em branco é a legislação sobre tráfico de drogas, que muitas vezes faz referência a listas de substâncias controladas em portarias e regulamentos específicos. Outros exemplos incluem leis sobre crimes ambientais e crimes financeiros, que frequentemente exigem a referência a outras leis e regulamentos para compreender exatamente o que é proibido ou permitido.

Crime de infração de medida sanitária preventiva.
O crime de infração de medida sanitária preventiva é uma norma penal em branco. Isso porque o art. 268, do Código Penal, que prevê esse tipo penal, faz referência a outras normas que estabelecem as medidas sanitárias que devem ser adotadas para prevenir a disseminação de doenças infectocontagiosas.

O art. 268 do Código Penal veicula, em sua redação, o preceito primário incriminador, isto é, o núcleo essencial da conduta punível, de modo que a União exerceu, de forma legítima e com objetivo de salvaguardar a incolumidade da saúde pública, sua competência privativa de legislar sobre direito penal.

Por exemplo, a referida lei estabelece que é crime desrespeitar medidas sanitárias determinadas por autoridade competente para evitar a introdução ou propagação de doença contagiosa. Para saber quais medidas sanitárias são essas, é necessário fazer referência às normas específicas editadas pelas autoridades sanitárias competentes.

Portanto, para aplicar corretamente a norma penal de Infração de medida sanitária preventiva, é preciso ter conhecimento das normas complementares que estabelecem as medidas sanitárias preventivas exigidas em cada caso específico.

Norma penal em branco heterônoma.
O referido tipo penal configura norma penal em branco heterogênea, razão pela qual necessita de complementação por atos normativos infralegais, tais como decretos, portarias e resoluções. Na espécie, essa complementação se faz mediante ato do poder público, compreendida a competência de quaisquer dos entes federados.

Ademais, ela não se reveste de natureza criminal, mas, via de regra, administrativa e técnico-científica, o que justifica a possibilidade de edição do ato normativo suplementador pelo ente federado com competência administrativa para tanto.

A complementação de norma penal em branco por ato normativo estadual, distrital ou municipal, para aplicação do tipo de infração de medida sanitária preventiva (Código Penal, art. 268), não viola a competência privativa da União para legislar sobre direito penal (CF/1988, art. 22, I).
Nesse contexto, de acordo com o entendimento desta Corte, a competência para proteção da saúde, no plano administrativo e no legislativo, é compartilhada entre a União, o Distrito Federal, os estados e os municípios, inclusive para impor medidas restritivas destinadas a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa. Assim, o descumprimento das medidas e dos atos normativos de controle epidemiológico previstos na Lei 13.979/2020, editados pelos entes federados em prol da incolumidade pública, enseja consequências no campo do direito penal.

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, reconheceu a existência da repercussão geral da questão constitucional suscitada (Tema 1.246 da repercussão geral) e, no mérito, por maioria, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria para dar provimento ao recurso extraordinário e, consequentemente, determinar o prosseguimento da ação penal ao afastar a alegação de atipicidade da conduta por ausência de norma complementadora do art. 268 do Código Penal.
STF. ARE 1.418.846/RS, relatora Ministra Presidente, julgamento finalizado no Plenário Virtual em 24.3.2023 (info 1088).

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