Exemplo Didático.
Ana, uma servidora pública aposentada, ganhou uma ação judicial contra a União, resultando na emissão de um precatório para pagamento de valores devidos a ela. Este precatório foi expedido e depositado em uma conta oficial no banco em julho de 2018. Algum tempo depois, o Tribunal determinou a suspensão da execução da sentença, impedindo Ana de acessar o dinheiro. Essa suspensão permaneceu ativa até que a União esgotasse todos os recursos disponíveis.
Ocorre que no início de 2021, sem que Ana tivesse conseguido levantar o valor depositado devido à suspensão, o banco cancelou automaticamente o precatório, transferindo o saldo para a Conta Única do Tesouro Nacional, conforme o art. 2º da Lei 13.463/2017. Ana só soube do cancelamento meses depois, quando foi ao banco para tentar levantar o dinheiro após a suspensão ter sido revogada.

Cancelamento automático de precatórios e requisições federais de pequeno valor (RPVs).
O cancelamento automático de precatórios e requisições federais de pequeno valor (RPVs), nos termos em que previsto no art. 2º da Lei n. 13.463/2017, operava-se, em linhas gerais, nos seguintes termos:
i) mês a mês, a instituição financeira depositária verificava as contas nas quais depositados valores relativos a precatórios federais e RPVs, de modo a identificar quais se encontravam sem movimentação por pelo menos dois anos;
ii) identificadas essas contas, a instituição financeira realizava automaticamente – sem qualquer decisão judicial – o cancelamento do precatório ou RPV, transferindo o saldo da conta respectiva para a Conta Única do Tesouro Nacional;
iii) a instituição financeira informava mensalmente o presidente do Tribunal acerca das ordens de pagamento canceladas no período correspondente, de modo que, ao final, essa informação fosse comunicada ao juízo da execução;
iv) o juízo da execução, cientificado do cancelamento do precatório ou RPV expedido em determinado processo de seu acervo, intimava nos autos o credor para ciência e tomada de providências, expedindo-se nova requisição de pagamento somente mediante requerimento do interessado, resguardada a ordem cronológica originária.

O cancelamento automático do RPV é constitucional?
Não. O art. 2º, caput, e § 1º, da Lei n. 13.463/2017 foi declarado inconstitucional. Vejamos:
É inconstitucional o cancelamento automático — realizado diretamente pela instituição financeira oficial depositária e sem prévia ciência do beneficiário ou formalização de contraditório — de precatórios e RPV federais não resgatados em dois anos.
STF. ADI 5755/DF, relatora Min. Rosa Weber, julgamento em 29 e 30.6.2022 (info 1061).

Houve, entretanto, modulação de efeitos.
Conquanto o art. 2º, caput, e § 1º, da Lei n. 13.463/2017 tenham sido declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal na sessão de julgamento de 30/06/2022, quando do exame da ADI 5.755/DF, essa declaração de inconstitucionalidade da norma não prejudica o exame da legalidade do procedimento de cancelamento automático de precatórios federais e RPVs, já que, ao apreciar os embargos de declaração opostos nessa ação direta de inconstitucionalidade, decidiu o STF pela atribuição de efeitos meramente prospectivos (ex nunc) à declaração de inconstitucionalidade da norma, “a partir da publicação da ata de julgamento meritório (06.7.2022)”.
Embargos de declaração acolhidos, em parte, para modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, assentando que o decisum de mérito proferido nesta ação direta somente produz efeitos a partir da publicação da ata de julgamento meritório (06.7.2022).
STF. ADI: 5755 DF, Relator: ROSA WEBER, Data de Julgamento: 29/05/2023, Tribunal Pleno.

Por consequência, as relações jurídicas ocorridas entre a data da publicação da Lei Federal 13.463 (06/07/2017) e a data da publicação da ata de julgamento da ADI 5.755/DF (06/07/2022), permanecem regidas pelo dispositivo legal em comento, o que significa dizer que a interpretação que o STJ conferir à norma contida no preceito legal disciplinará todos os atos de cancelamento automático de RPVs e precatórios federais que tenham sido executados no interregno em que o art. 2º, caput, e § 1º, da Lei n. 13.463/2017 produziram efeitos jurídicos não desconstituídos pelo controle abstrato de constitucionalidade realizado pelo STF.

No caso de Ana, o cancelamento foi realizado de forma válida em virtude da modulação dos efeitos da decisão proferida na ADI 5.755/DF?
Não. O cancelamento do precatório de Ana foi considerado ilegal porque foi realizado sem considerar a suspensão judicial que impediu Ana de levantar os valores, demonstrando que não houve inércia de sua parte.

Nos termos do Tema Repetitivo 1.217-STJ, é ilegal esse mesmo ato se circunstâncias alheias à vontade do credor impediam, ao tempo do cancelamento, o levantamento do valor depositado.

Desproporcionalidade da previsão legal.
Nesse sentido, o cancelamento indiscriminado e acrítico de precatórios ou RPVs federais, decorrente tão somente do decurso do tempo, constitui medida absolutamente desproporcional se admitido sem qualquer consideração acerca da inércia do titular do crédito, ocorrendo mesmo em situações concretas nas quais o levantamento do montante depositado não tenha sido efetivado por circunstâncias alheias à vontade do credor, tais como a existência de ordem judicial impeditiva ou eventual demora na realização de atos processuais imputável somente ao serviço judiciário.

Tal compreensão encontra-se em consonância ao antigo entendimento jurisprudencial, segundo o qual o titular de uma pretensão somente deve ser penalizado com a sua perda se e quando caracterizada a sua inércia no exercício daquela, não podendo ser prejudicado, portanto, por eventual extrapolação de prazo legal de exercício da pretensão para a qual não tenha ele, o titular, dado causa (Súmulas 78/TFR, 106/STJ e Tema 179/STJ); jurisprudência esta que, a par de estável e uniforme, impõe o art. 926, caput, do CPC que seja também coerente, e a coerência demanda que essa mesma ratio decidendi seja aplicada, mutatis mutandis, na solução da controvérsia em exame, não se permitindo o cancelamento automático do precatório ou do RPV em prejuízo do credor do ente federal senão quando caracterizada, no processo respectivo, a inércia do titular do crédito, vedando-se o cancelamento automático sempre que o levantamento do montante depositado encontrar-se obstado por circunstância alheia à vontade do credor.

No período em que a norma permaneceu vigente em virtude da modulação de efeitos, esta deve ser aplicada da forma menos abrangente possível.
Além disso, deve-se levar em consideração o fato de que o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade material do art. 2º da Lei n. 13.463/2017, de modo que, a rigor, está-se aqui a discorrer sobre a aplicação, em situações concretas, de providência (cancelamento automático de RPV ou precatório federal) que é incompatível com a Constituição Federal. Sendo assim, norma inconstitucional não deve ser aplicada, mas, se aplicável por circunstâncias excepcionais tais como as aqui presentes, deve ser aplicada da maneira menos abrangente possível, a partir de uma interpretação restritiva da norma que conduza a uma mínima perturbação da ordem constitucional.

Nos casos em que o cancelamento for considerado válido, o prazo prescricional para o requerimento da expedição de um novo RPV é de 5 anos.
Ressalte-se ainda que corrido o cancelamento válido do precatório ou RPV, em razão do preenchimento de ambos os requisitos (inércia do credor caracterizada no processo e decurso do biênio legal), nada obsta a que nova ordem de pagamento seja expedida a requerimento do interessado, na forma do art. 3º da Lei 13.463/2017 e respeitando-se, para tanto, o prazo prescricional tal como disciplinado por este Tribunal Superior quando do julgamento do Tema 1.141/STJ:
#Tese Repetitiva – Tema 1.141-STJ: A pretensão de expedição de novo precatório ou requisição de pequeno valor, fundada nos arts. 2º e 3º da Lei n. 13.463/2017, sujeita-se à prescrição quinquenal prevista no art. 1º do Decreto 20.910/32 e tem, como termo inicial, a notificação do credor, na forma do § 4º do art. 2º da referida Lei 13.463/2017

É ônus do credor requerer ao juízo que oficie a instituição financeira acerca dos motivos pelos quais ainda não foi possível o levantamento dos valores, evitando-se o cancelamento automático do RPV.
Ademais, o cancelamento do RPV ou precatório, conforme disposto no (inconstitucional) art. 2º, § 1º, da Lei n. 13.463/2017, é operacionalizado pela instituição financeira depositária de forma automática, a qual, entretanto, não tem conhecimento do caso concreto para deixar de proceder ex officio ao cancelamento nos casos em que, decorrido o biênio legal, o levantamento do depósito pelo credor esteja impedido por circunstâncias alheias à sua vontade. Assim, nos casos em que inexiste inércia do credor mas razões outras impedem o levantamento do depósito, é de rigor que seja comunicada a instituição financeira depositária, tal como previsto no art. 33, § 2º, da Resolução n. 303/2019 do Conselho Nacional de Justiça, que regulamentava o cancelamento automático previsto na Lei n. 13.463/2017. Para que tal comunicação se consume, constitui ônus do interessado provocar o juízo da execução, a fim de que se oficie à instituição depositária de modo a se impedir o cancelamento automático do RPV ou precatório, ou, se já automaticamente cancelado, para que se proceda ao estorno dos valores indevidamente transferidos à Conta Única do Tesouro Nacional.

Tese fixada.
Dessa forma, fixa-se a seguinte tese jurídica:
#Tese Repetitiva – Tema 1.217-STJ: É válido o ato jurídico de cancelamento automático de precatórios ou requisições federais de pequeno valor realizados entre 06/07/2017 (data da publicação da Lei 13.463/2017) e 06/07/2022 (data da publicação da ata da sessão de julgamento da ADI 5.755/DF), nos termos do art. 2º, caput, e § 1º, da Lei n. 13.463/2017, desde que caracterizada a inércia do credor em proceder ao levantamento do depósito pelo prazo legalmente estabelecido (dois anos). É ilegal esse mesmo ato se circunstâncias alheias à vontade do credor impediam, ao tempo do cancelamento, o levantamento do valor depositado.
STJ. REsp 2.045.191-DF, REsp 2.045.193-DF, Rel. Ministro Paulo Sérgio Domingues, Primeira Seção, por unanimidade, julgado em 22/5/2024, DJe 27/5/2024 (info 813).
STJ. REsp 2.045.191-DF, REsp 2.045.193-DF, Rel. Ministro Paulo Sérgio Domingues, Primeira Seção, por unanimidade, julgado em 22/5/2024, DJe 27/5/2024 (info 813).

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