Exemplo didático.
Imagine que João, prefeito de um pequeno município, foi acusado pelo Ministério Público de improbidade administrativa por ter firmado contratos superfaturados para a compra de equipamentos públicos. A ação civil pública proposta pedia o ressarcimento total do suposto dano ao erário em R$ 1 milhão e a aplicação de uma multa civil de R$ 500 mil.

Na vigência da Lei nº 8.429/1992, o juiz decretou a indisponibilidade de bens de João no montante de R$ 1,5 milhão (dano + multa civil), sem exigir prova de risco iminente de dilapidação do patrimônio. Isso era possível porque, antes da alteração legislativa, o STJ entendia que o “periculum in mora” (perigo da demora) era presumido, ou seja, não precisava ser comprovado.

Ocorre que, durante a tramitação do processo, entrou em vigor a Lei nº 14.230/2021, que modificou a Lei de Improbidade Administrativa (LIA). Essa nova lei passou a exigir a demonstração concreta de risco ao ressarcimento do erário e proibiu a indisponibilidade abrangendo a multa civil.

Diante disso, João pediu a revisão da indisponibilidade dos bens com base na nova lei, argumentando que:

O perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo não estava demonstrado no caso concreto.
O valor da multa civil não poderia mais ser incluído na indisponibilidade.

O Tribunal de Justiça negou o pedido sob o fundamento de que a nova regra não poderia retroagir a processos em andamento. João recorreu ao STJ, levando o caso para julgamento unificado junto a outros recursos similares. Em sua argumentação, João afirma que a nova lei, de natureza processual, teria aplicação imediata aos processos em curso, de modo que as medidas já deferidas poderão ser reapreciadas para fins de adequação à atual redação dada à Lei n. 8.429/1992.

João tem razão?
Sim. As disposições da Lei n. 14.230/2021 são aplicáveis aos processos em curso para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens, de modo que as medidas já deferidas poderão ser reapreciadas para fins de adequação à atual redação dada à Lei n. 8.429/1992.

Controvérsia.
A questão controvertida tem por escopo definir a aplicação da nova lei de improbidade administrativa (Lei n. 14.230/2021) a processos em curso, iniciados na vigência da Lei n. 8.429/1992, para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens, inclusive a previsão de se incluir, nessa medida, o valor de eventual multa civil.

Como era antes da Lei nº 14.133/2021?
Com base na redação original da Lei n. 8.429/1992, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que era desnecessária a demonstração de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo para o deferimento do pedido de indisponibilidade de bens e que a medida poderia abranger o valor de eventual multa civil (Temas 701 e 1.055). Vejamos:
Para a decretação da indisponibilidade de bens basta que se prove o fumus boni iuris, sendo o periculum in mora presumido (implícito). (ENTENDIMENTO SUPERADO)
A medida cautelar de indisponibilidade de bens, prevista na LIA, consiste em uma tutela de evidência, de forma que basta a comprovação da verossimilhança das alegações, pois pela própria natureza do bem protegido, o legislador dispensou o requisito do perigo da demora. STJ. 1ª Seção.
STJ. REsp 1366721/BA, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. p/ Acórdão Min. Og Fernandes, julgado em 26/02/2014 (recurso repetitivo).

#Tese Repetitiva – Tema 701-STJ: É possível a decretação da indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro. (CANCELADO)

Quanto ao valor máximo da indisponibilidade, era possível que se determinasse a indisponibilidade de bens em valor superior ao indicado na inicial da ação, visando a garantir o integral ressarcimento de eventual prejuízo ao erário, levando-se em consideração, até mesmo, o valor de possível multa civil como sanção autônoma.

Indisponibilidade de bens em valor superior ao indicado na Inicial da ação de improbidade administrativa visando a garantir o integral ressarcimento de eventual prejuízo ao erário.
É possível que se determine a indisponibilidade de bens em valor superior ao indicado na inicial da ação, visando a garantir o integral ressarcimento de eventual prejuízo ao erário, levando-se em consideração, até mesmo, o valor de possível multa civil como sanção autônoma. Isso porque a indisponibilidade acautelatória prevista na Lei de Improbidade Administrativa tem como finalidade a reparação integral dos danos que porventura tenham sido causados ao erário. REsp 1176440-RO, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 17/9/2013. (SUPERADO)

A indisponibilidade de bens deve recair sobre o patrimônio do réu de modo suficiente a garantir o integral ressarcimento de eventual prejuízo ao erário, levando-se em consideração, ainda, o valor de possível multa civil como sanção autônoma (STJ. AgRg no REsp 1311013 / RO) (SUPERADO)

O que muda com a Lei nº 14.230/2021?
Porém, sobreveio a Lei n. 14.230/2021 que promoveu profundas alterações na Lei n. 8.429/1992. Parte dessas alterações foi direcionada à medida de indisponibilidade de bens que passou a exigir para o seu deferimento “a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo” (art. 16, § 3º), estabelecendo que não incidirá “sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita” (art. 16, § 10).

A tutela provisória pode ser modificada a qualquer tempo, devendo ser revista de acordo com os novos critérios legais.
Nessa toada, por ser a tutela provisória de indisponibilidade de bens medida que pode ser, a qualquer tempo, revogada ou modificada, a Lei n. 14.230/2021 é aplicável aos processos em curso, tanto em pedidos de revisão de medidas já deferidas como nos recursos ainda pendentes de julgamento.

Dessa forma, as disposições da Lei n. 14.230/2021 são aplicáveis aos processos em curso, para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens, de modo que as medidas já deferidas poderão ser reapreciadas para fins de adequação à atual redação dada à Lei n. 8.429/1992, notadamente no que se refere à necessidade de demonstração de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo e à impossibilidade de a constrição abranger o valor da multa civil (art. 16, §§ 3º e 10).

Cancelamento dos Temas 701 e 1.055.
Ademais, sob consequência lógica, por contrariarem os dispositivos do art. 16, §§ 3º e 10, da Lei 8.429/1992, devem ser cancelados os Temas 701 e 1.055 dos recursos especiais repetitivos.
STJ. REsp 2.074.601-MG, REsp 2.089.767-MG, REsp 2.076.137-MG, REsp 2.076.911-SP, REsp 2.078.360-MG, Rel. Ministro Afrânio Vilela, Primeira Seção, por unanimidade, julgado em 6/2/2025, DJEN 13/2/2025 (info 840).

Sobre o tema:
A demonstração do requisito da urgência para a indisponibilidade de bens, prevista no art. 16 da Lei de Improbidade Administrativa (com a redação dada pela Lei n. 14.230/2021), tem aplicação imediata ao processo em curso dado o caráter processual da medida.
STJ. AREsp 2.272.508-RN, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, por maioria, julgado em 6/2/2024 (info 800).

Jurisprudência em Teses do STJ, Ed. 234:
Tese 6: A partir da vigência da Lei n. 14.230/2021, exige-se a demonstração do requisito da urgência, além da plausibilidade do direito invocado, para o deferimento da indisponibilidade de bens em ação de improbidade administrativa.

Tese 7: A necessidade da demonstração de urgência para o deferimento da medida cautelar de indisponibilidade de bens em ação de improbidade administrativa reveste-se de caráter processual, de modo que a alteração legislativa sobre o art. 16 da Lei n. 8.429/1992, dada pela Lei n.14.230/2021, tem aplicação imediata ao processo em curso.

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